Fechar
Buscar no Site

Revelação de voto de Sarney põe em discussão limites da transparência

por Carlos André Moreira

A imagem foi congelada, dividida frame a frame e analisada à exaustão. Com um adesivo da candidata Dilma Rousseff na lapela, o senador e ex-presidente José Sarney é visto apertando e confirmando as teclas de urna eletrônica de tal ângulo que se torna possível concluir que, membro importante da base aliada do governo, Sarney votou, na verdade, em Aécio Neves. A cena foi transmitida pela TV Amapá no dia mesmo da votação sem muito alarde. Mas, na semana seguinte a uma eleição especialmente acirrada, a duplicidade eleitoral de Sarney virou notícia e tema de debates e protestos nas redes sociais.

As teses sobre o gesto logo se espalharam como santinhos pelas calçadas no primeiro turno: Sarney, raposa velha da política, não teria cometido um deslize desses, e sim enviado, por meio da cena, um recado direto ao governo; Sarney estaria cotado para o Ministério da Cultura, e a divulgação do vídeo poderia ser a munição para negar ao aliado valioso uma recompensa tão constrangedora etc. O que poucas dessas teses pareceram enfrentar foi o problema que está na origem da própria discussão: a divulgação do voto de Sarney, cujo sigilo foi reiteradamente garantido por todos os códigos eleitorais desde o primeiro instituído no Brasil, em 1932, é um vício conceitual para além de qualquer mérito que exista na discussão de sua ambiguidade política.

Que Sarney tenha declarado um voto e confirmado outro não deveria surpreender ninguém – é exatamente para isso que o voto secreto existe. Antes de sua instituição no Brasil, muitos caciques e coronéis políticos acompanhavam as votações de olho no que declarariam os eleitores que de algum modo estivessem sob sua influência (agregados, peões, empregados, arrendatários, devedores). Votar contra o chefão local declarando o voto em voz alta era um suicídio metafórico e por vezes literal. Garantir o sigilo foi, também, garantir a possibilidade de que um eleitor minta em público para evitar inconveniências, mas vote com o coração aberto no recesso da cabine. Claro que Sarney, por sua história e perfil político, está mais próximo dos coronéis fiscalizadores do que dos eleitores “em risco”, mas isso não invalida o fato de que tal direito também se estende a ele.

A discussão sobre que tipo de comportamento os políticos devem ter em público e em privado não é nova nem pacífica. Um escritor norte-americano misto de literato e ativista chamado Dave Eggers teve recentemente lançado no Brasil um livro que contribui um pouco para ela. O Círculo (Companhia das Letras) é um romance que mescla e reinterpreta para o século 21 as distopias 1984, de George Orwell, e Admirável Mundo Novo. Da primeira, aproveita o conceito de vigilância global invasiva. Da segunda, o insight que torna o livro de Huxley superior ao de Orwell: o fato de que uma tirania tem mais eficiência em dominar um povo apelando para o hedonismo do que para o medo.

Na trama de O Círculo, Mae Holland, uma jovem ao mesmo tempo um tanto ambiciosa e um tanto deslumbrada, é contratada para trabalhar na “mais inovadora empresa de tecnologia do mundo”, o tal “círculo” do título, um misto bastante crível do que ocorreria se uma única companhia conseguisse crescer e abarcar de uma vez só o Facebook, o Google e a Amazon. O Círculo é uma empresa que investe em inovações tecnológicas e gerencia aplicativos de redes sociais com participação de quase 90% da população dos Estados Unidos – e de um número expressivo mas indefinido de usuários ao redor do mundo. Movidos pela ideologia de comunidade, colaboração e transparência que é uma espécie de mantra religioso na era digital, logo o grupo avança para atitudes políticas bem-intencionadas, como a colocação de microcâmeras baratas no mercado com capacidade de transmissão imediata de suas imagens para a nuvem. Logo, não há espaço público que não tenha sido mapeado e possa ser acessado em tempo real. Quem tem motivos para não gostar da vigilância 24 horas descentralizada provavelmente está mal intencionado, como governos autoritários ou infratores da lei. Não tarda para que a ideologia da transparência passe a ser exigida também dos políticos: os que não querem usar a microcâmera pendurada no pescoço e transmitindo seu cotidiano 24 horas por dia para a rede social do Círculo, acessível a comentários e à interatividade dos usuários da rede, devem querer esconder alguma coisa. Em um último golpe magistral, logo o Círculo está propondo que a própria democracia seja exercida pelo perfil do usuário na rede, por meio de votos feitos em uma rede social na qual o anonimato é inviável.

A jornada de Mae Holland à medida que vai galgando postos e assimilando a ideologia do Círculo é, a seu modo, o triunfo do otimismo alienado das boas intenções sobre o perigo da tirania da multidão. Os ideólogos do Círculo, gigantes do mundo corporativo, levam a ideologia do anarquista Pierre-Joseph Proudhon a um extremo inimaginável, e declaram que “a privacidade é um roubo”.

A discussão sobre os atos e motivações políticas por trás do gesto de Sarney não deve, portanto, esquecer que há algo errado na origem do próprio debate: a revelação do voto de alguém que não disse, ao menos abertamente, em quem estava votando. Não se deve esquecer que, questões políticas à parte, o bate-boca parte da violação do que Georges Duby chamou, no prefácio de Uma História da Vida Privada, da “área particular, claramente delimitada (…), atribuída a essa parte da existência que todas as línguas denominam privada, uma zona de imunidade oferecida ao recolhimento, onde todos podemos abandonar as armas e as defesas das quais convém nos munirmos quando nos arriscamos no espaço público”…

O conteúdo deste blog é livre e seus editores não têm ressalvas na reprodução do conteúdo em outros canais, desde que dados os devidos créditos.

mais / Postagens