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Político mais longevo do país, José Sarney constrói em vida seu memorial

Aos 93 anos completados ontem, o ex-presidente José Sarney congregou em sua mansão no Lago Sul, em Brasília, o que colunistas sociais chamaram de “a nata da política nacional”. A festa de aniversário, organizada pela filha Roseana, reuniu sob um cenário de plantas verdes e amarelas todas as cores ideológicas do país. Lá estavam o presidente em exercício, Geraldo Alckmin, o ministro do STF Alexandre de Moraes, o ex-presidente Michel Temer, o procurador-geral da República, Augusto Aras, o governador do DF, Ibaneis Rocha, a presidente do PT, Gleisi Hoffmann, e uma miríade de magistrados.

Sarney, antes chamado “raposa”, hoje é visto como cacique. Distribui conselhos e busca pavimentar terrenos movediços, seja na direita, na esquerda ou no centro. Foi ele quem entrou em campo, no final do mês, para tentar apaziguar os ânimos, quando uma crise parlamentar inédita opôs o presidente do Congresso, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), ao presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), sobre o rito de tramitação de medidas provisórias.

Em dezembro, após a vitória do presidente Lula, Sarney já tinha recebido a visita de Alckmin. “Com uma memória invejável, Sarney é merecedor de homenagens”, escreveu o ex-governador de São Paulo numa rede social.

Político de carreira mais longeva no país (59 anos), José Sarney de Araújo Costa (nascido José Ribamar Ferreira de Araújo) mantém um olho na vida e outro na eternidade. E prepara há anos, com a ajuda de familiares, amigos e correligionários, o memorial que deverá preservar seu legado no futuro.

Em agosto do ano passado, na solenidade de comemoração dos 114 anos da AML (Academia Maranhense de Letras), Sarney esboçava certo tom de melancolia: “Saber que já não vive nenhum dos acadêmicos que votaram em mim e formaram os quadros daquele tempo é o único desconforto desta longa convivência”, discursou.

O tempo passado a que ele se refere é 1952, quando lhe foi concedida, aos precoces 22 anos, a cadeira de Humberto de Campos. No evento, o vice que assumiu o mandato de Tancredo Neves na dramática transição democrática brasileira continuou: “Sou, como se definia Norberto Bobbio aos 90 anos, um sobrevivente. O mesmo Bobbio que dizia que a velhice era sublime: era muito curta.”

Em 1980, Sarney passou a ocupar a cadeira 38 da ABL (Academia Brasileira de Letras). Em 1986, tomou posse na Academia de Ciências de Lisboa como correspondente estrangeiro na Classe de Letras — camadas consideráveis de imortalidade que, no entanto, não parecem bastar.

Para além do registro para a História, faltava ao ex-presidente um verdadeiro mausoléu — cuja lápide de granito preto chegou inclusive a cimentar, mas que mandou retirar tempos depois. Não pegou bem a informação de que seu Taj Mahal estava sendo construído dentro de um patrimônio público de forma irregular. Foi assim que a denúncia chegou aos ouvidos da população em 2005, e o fato ainda ressoa por São Luís sempre que se fala no Convento das Mercês.

Reforma pública, instituição privada
O convento é o maior prédio do centro histórico, com 4.320 m² de área construída, e seu conjunto arquitetônico é um dos dois únicos remanescentes da Ordem dos Mercedários no país, juntamente com o de Belém do Pará. A bênção de inauguração, em 1654, foi feita por ninguém menos que o padre Antônio Vieira.

Depois que os mercedários se foram, o Tesouro do estado do Maranhão comprou o prédio da Diocese de São Luís em 5 de maio de 1905. Com vistas a abrigar ali um quartel da PM e do Corpo de Bombeiros, o governo inverteu a entrada principal, que dava para a foz do Rio Bacanga, na baía de São Marcos, para uma fachada única na rua da Palma.

A capela na qual Vieira fazia suas pregações contra a nobreza ruiu e nunca mais foi posta de pé. Quando os batalhões foram deslocados para as sedes atuais, no final dos anos 1980, o prédio já havia sido tombado pelo Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional). Em 1997, a Unesco declarou São Luís como Patrimônio Cultural Mundial, e o convento entrou para o rol dos prédios “aqui ninguém mexe”.

A cargo da construtora Norberto Odebrecht, a restauração custou cerca de US$ 9,5 milhões (o que equivale a aproximadamente R$ 121 milhões pela cotação atual, mais inflação).

Quase ao término da obra, e 43 dias antes de deixar a Presidência do Brasil, José Sarney foi pessoalmente ao cartório de sua irmã Lucy, em São Luís, e criou ali uma instituição privada de nome “Fundação da Memória Republicana”.

Em 3 de abril de 1990, a toque de caixa, a Assembleia Legislativa do Maranhão aprovou — sem discussão nem menção a José Sarney ou ao convento — um projeto do governador Epitácio Cafeteira que autorizava o Poder Executivo a participar da até então desconhecida fundação.

Transferência de posse
“Eis aí o escândalo”, afirma o jornalista Emilio Azevedo, autor do livro “O Caso do Convento das Mercês” (2006), no qual ele relata o passo a passo do que chama de “dissimulação” até chegar ao que denomina de “grilagem”.

Em 13 de junho de 1990, no cartório de Jurandy Leite, foi lavrada a escritura segundo a qual o governo do Maranhão transferia para a Fundação da Memória Republicana “todo o domínio, posse, direito e ação” sobre o Convento das Mercês “para que dele possa usar e gozar livremente como seu, fazendo esta doação firme e valiosa”.

A participação do governo se daria por meio de um representante no conselho, nomeado pelo governador. “Outra imoralidade é que, mesmo com a doação consumada em cartório, o governo continuou bancando a reforma, tudo com o dinheiro do contribuinte e sem o conhecimento do contribuinte”, critica Azevedo.

Em 2004, o MPF (Ministério Público Federal) entrou com uma ação declarando a ilegalidade e nulidade da doação. O órgão invocava um decreto-lei de 1937, em vigor até hoje, que impede que um bem público tombado seja doado a uma instituição privada. Só em 2009, a Justiça Federal no Maranhão atendeu ao pedido do MPF e decidiu anular a doação.

Em outubro do mesmo ano, a fundação, renomeada nesse meio-tempo como Fundação José Sarney, foi fechada após denúncias de irregularidades na prestação de contas de um contrato de patrocínio que transferiu à entidade R$ 1,3 milhão da Petrobras.

Mas, em outubro de 2011, a então governadora Roseana Sarney ressuscitou a entidade, agora sob o rótulo de “Fundação da Memória Republicana Brasileira”, sem finalidade lucrativa, dotada de autonomia administrativa e financeira e de patrimônio próprio, possuindo jurisdição em todo o estado maranhense. A sede: Convento das Mercês, rua da Palma, 502, no coração do bairro do Desterro.

Durante sua passagem pelo governo do Maranhão, o ministro da Justiça Flávio Dino mandou embora 48 funcionários comissionados da fundação e admitiu novos. Disse que, a partir dali, a proposta era que estivesse “dentro de um conceito realmente republicano”, “sem culto a particulares”. Mas críticos de sua gestão consideram que ele não mexeu no vespeiro como deveria. O governo maranhense paga todas as contas da fundação.

“É uma fundação pública de direito privado na qual a família Sarney ocupa cargos vitalícios e hereditários visando ao culto à personalidade do ex-presidente. Dino manteve isso”, afirma o historiador Wagner Cabral da Costa, autor de “Sob o Signo da Morte: o Poder Oligárquico de Victorino a Sarney”.

Acervo em dois pavimentos
O acervo passou todo esse tempo acomodado sob ar climatizado no pavimento superior, acessado por escadas metálicas de estrutura contemporânea. Pelos dados oficiais, seria composto de 120 mil textos manuscritos e datilografados, cem mil recortes de jornais, 880 mil cartas, além de cartazes, diplomas, mapas, partituras, discursos e despachos.

Por e-mail, a fundação informa que todo o acervo está disponível mediante agendamento de pesquisa presencial. A parte audiovisual contém 40 mil fotos, 355 filmes e reportagens, 145 fitas cassete, 150 CDs e mais de cem CD-ROMs. Já o acervo bibliográfico conta com cerca de 35 mil livros, e o museológico, aproximadamente 40 mil peças.

No térreo, estão outras três lembranças, de volumes incompatíveis com o andar de cima. Uma delas é um busto de Sarney esculpido em granito pelo artista Alberto Santos, de Teresina. Altivo, ele mira o claustro, o poço central e a sequência de arcos em todo o perímetro. Abaixo do bigode do busto, a frase “Maranhão minha terra minha paixão”. Ganhou dos gaiatos a alcunha de “Cabeção”.

Logo atrás, à sombra, estão perfilados dois carros: um Ford Galaxie Landau 1982 preto, que usou na presidência, e uma Caravan Chevrolet 1985 branca, que transportava a primeira-dama do Palácio do Planalto à Pericumã, a então fazenda da família na divisa entre Brasília e Goiás.

É tudo material da época em que Sarney foi presidente do Brasil, mas também dos tempos em que comandou o Senado e em que governou o Maranhão. “Tudo isso foi doado quando da transformação da Fundação José Sarney em fundação pública”, afirma a assessoria, explicando a benemerência. A reportagem obteve informações sobre o acervo, propostas, acesso às informações, orçamento e atividades previstas em diversas mensagens trocadas entre os dias 3 de março e 24 de abril.

Também foram solicitadas entrevistas às assessorias de José Sarney e Roseana Sarney, que não foram atendidas.

Antes da Galeria Sarney propriamente dita, há uma antessala que já anuncia o ex-presidente, mas que se veste de introdução didática à história da democracia no Brasil. Um longo painel traz os retratos de todos os presidentes da República, finalizando em Michel Temer — Bolsonaro e Lula, por enquanto, não estão lá.

No quadro que trata da ditadura, a menção é “regime militar”. Nem por isso o texto pega leve. A última frase diz que “brasileiros considerados ‘subversivos’ eram torturados e mortos nos porões da Ditadura”.

Já o quadro “Redemocratização” afirma que, durante o governo Sarney, todas as vertentes políticas ficaram livres de perseguições, as centrais sindicais foram legalizadas e passaram a ter voz e vez. Mas registra, na última frase, que a história reconheceria José Sarney como o “Presidente da Democracia”.

‘Flores em vida’
“Sarney tenta se dar flores em vida, mas é invariavelmente visto como ilegítimo”, diz o cientista político Carlos Melo. “Ele cumpriu papel importante ao entregar ao Brasil uma nova Constituição e eleições diretas, mas entrou no poder por uma traquinagem da história, com Tancredo morrendo na véspera da posse e Figueiredo saindo pela porta do lado para não entregar a faixa presidencial àquele que via como traidor.”

A ligação de Sarney com os militares, aliás, não está à vista no museu, como lembra o jornalista Emilio Azevedo. Salpicam imagens do ex-presidente com Tancredo Neves, Claude Lévi-Strauss, Oscar Niemeyer, Jorge Amado, Gilberto Gil, José Saramago, Ulysses Guimarães. “Deveria ter uma foto do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, que foi adido militar do governo Sarney”, cutuca Azevedo, um dos fundadores da agência multiplataforma Tambor, em São Luís.

Uma de suas entrevistadas no livro sobre o caso do Convento das Mercês, a professora da UFMA (Universidade Federal do Maranhão) Maria de Fátima da Costa Gonçalves, já falecida, contou da dificuldade em encontrar informações para sua tese de doutorado requisitadas à fundação. Deram-lhe um material no qual estavam incluídos desenhos que os filhos de Sarney fizeram quando crianças.

Carlos Melo resgata ainda a força da vaidade na busca por um memorial. “Deve ter doído a ele, um exímio operador político, que saiu de sua aldeia para cumprir um desafio histórico, ter chegado à Presidência como vice.” E normalmente não há ruas com nomes de vices, recorda.

Entretanto, diversos logradouros homenageiam o clã Sarney pelo Maranhão, Goiás e Sergipe — não apenas os já falecidos, mas os sobreviventes à PEC nº 005/2018, que concebeu ao parágrafo 9º da Constituição a seguinte redação: “É proibida a denominação de obras e logradouros públicos com o nome de pessoas vivas.”

Apenas em São Luís constam a ponte José Sarney, a rua Fernando Sarney (filho), a travessa Roseana Sarney (filha), o Centro Educacional Roseana Sarney Murad (filha casada) e a Maternidade Marly Sarney (esposa). Para não dizer que a Constituição nunca teve peso, o letreiro do Tribunal Regional do Trabalho do Maranhão não exibe mais o nome do ex-presidente.

Dono do lugar
Em Pinheiro, na baixada maranhense, o primogênito José Sarney, então José Ribamar, nasceu em casa com a ajuda de duas parteiras. Nasceu empelicado, ou seja, envolto na bolsa amniótica, e seu primeiro banho se deu numa banheira em que a mãe, a avó e uma vizinha colocaram objetos de ouro para que a criança fosse feliz. Dizem em Pinheiro que ele cresceu inteligente porque não usara touca.

Por aí segue a biografia do ex-presidente contada por ele mesmo no livro “Galope à Beira-Mar”. Essa casa virou Museu Casa de Sarney, ocupa meio quarteirão no centro, está aberta à visitação há 21 anos e talvez tenha como ambição virar centro de peregrinação algum dia, quiçá com essas histórias de fundo.

Sarney pode optar por ser enterrado no mausoléu da ABL, no cemitério São João Batista, no Rio. Túmulo também não lhe falta no Cemitério do Gavião, em São Luís, onde estão enterrados, sob uma campa de mármore negro, o pai, Sarney de Araújo Costa, a mãe, Dona Kiola, e o avô Assuéro.

Por enquanto, o mais antigo dos imortais da ABL continua lustrando sua biografia com aparições em ambientes democráticos e participações que buscam preservar sua memória seletiva.

Em resposta ao TAB, a assessoria do ex-presidente José Sarney afirma em nota que “a Fundação da Memória Republicana Brasileira foi constituída pelo Estado do Maranhão com a doação de importante acervo pelo Presidente José Sarney. O registro dessa doação é público”. E argumenta que “evidentemente não há ‘culto da personalidade’, mas o respeito à História”.

A propósito da discussão sobre um futuro mausoléu, a assessoria diz que “há uma questão semântica”. “‘Monumento funerário imponente ou de dimensões avantajadas’, diz o dicionário Houaiss. A hipótese do Presidente Sarney ser enterrado no Convento das Mercês não dependeria apenas de um desejo seu, mas precisaria da anuência do Estado do Maranhão”.

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