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Lula – privacidade versus interesse público

Frequentemente insinuada na cobertura dos jornais, a relação amorosa de Rosemary Nóvoa de Noronha, ex-chefe do gabinete da Presidência da República em São Paulo, com o ex-presidente Lula finalmente foi escancarada em recente edição da Folha de S.Paulo: “Poder de assessora vem de relação íntima com Lula”, cravou a chamada de primeira página.

A jornalista Suzana Singer, ombudsman daquele jornal, fez oportuna análise da matéria. Sem usar a palavra “amante”, o jornal conta que, nas 23 viagens internacionais em que Rosemary acompanhou Lula, a então primeira-dama Marisa Letícia nunca estava.

Segundo a reportagem, havia um esquema especial que permitia o acesso à suíte presidencial nessas escapadas. Seria um relacionamento de 19 anos, iniciado quando ela era bancária e ele candidato derrotado à Presidência da República.

“A Folha invadiu a privacidade de Lula? Sim. Era necessário? Sim”. As respostas de Suzana Singer às interrogações éticas, curtas e diretas, são redondas. Concordo plenamente.

O jornalismo brasileiro, ao contrário da imprensa norte-americana, por exemplo, tende a preservar a intimidade dos homens públicos. As escapulidas dos ex-presidentes Juscelino Kubitschek e João Figueiredo, conhecidas e comentadas nas rodas de jornalistas, nunca migraram para as manchetes dos jornais.

O mesmo se pode dizer do comportamento da imprensa com Fernando Henrique Cardoso. FHC teve um filho fora do casamento. A mídia, embora ciente do fato, preservou a privacidade do ex-presidente. O episódio foi revelado pela Folha de S. Paulo quando ele, já viúvo e ex-presidente, reconheceu o filho.

Os episódios, todos, poderiam ser “interessantes” para o público (despertavam curiosidade), mas não eram de interesse público legítimo. Não estava em jogo dinheiro público.

O caso Lula, no entanto, é bem diferente. Segundo a Polícia Federal, Rose conseguiu, entre outras coisas, colocar, em postos estratégicos do governo, amigos corruptos, que vendiam pareceres jurídicos favoráveis a empresários.

Lula, ainda presidente da República, prestou –mesmo que não soubesse disso – favores à quadrilha apadrinhada por Rose. Por sua influência, indicou os irmãos Paulo Vieira e Rubens Vieira para a direção, respectivamente, da ANA e da Anac. Os irmãos Vieira, ligados a gente do governo, passaram a vender facilidades a empresários que dependiam de decisões de Brasília.

Rose, gabando-se de sua relação íntima com Lula, tinha influência no Banco do Brasil. Trabalhou pela escolha do atual presidente do BB, Aldemir Bendine e indicou diretores da instituição.

Como foi possível que Rose, uma antiga secretária do PT, acumulasse tanto poder, a ponto de influenciar em setores nevrálgicos do governo? Tudo isso, rigorosamente de interesse social, só ganhou dimensão pública graças ao trabalho da imprensa.

Só isso, e não é pouco, já justificaria a invasão da privacidade do ex-presidente Lula. A defesa do direito à intimidade não pode ser usada para impedir a investigação e revelação pela imprensa de informações de evidente interesse público. O direito à privacidade não pode ser jamais um escudo protetor.

Cito, amigo leitor, um texto belíssimo e de grande atualidade: A imprensa e o dever da verdade, de Ruy Barbosa. Recomendo-o vivamente a todos os que se preocupam com a ética informativa e as relações entre o jornalismo e o poder. Não resisto, caro leitor, à vontade de aguçar sua curiosidade.

“A imprensa”, dizia Rui Barbosa, “é a vista da Nação. Por ela é que a Nação acompanha o que lhe passa ao perto e ao longe, enxerga o que lhe malfazem, devassa o que lhe ocultam e tramam, colhe o que lhe sonegam, ou roubam.” (…) O poder não é um antro:é um tablado. A autoridade não é uma capa, mas um farol. A política não é uma maçonaria, e sim uma liça. Queiram, ou não queiram, os que se consagraram à vida pública, até à sua vida particular deram paredes de vidro. Agrade, ou não agrade, as constituições que abraçaram o governo da Nação pela Nação têm por suprema esta norma: para a Nação não há segredos; na sua administração não se toleram escaninhos; no procedimento dos seus servidores não cabe mistério; e toda encoberta, sonegação ou reserva, em matéria de seus interesses, importa, nos homens públicos, traição ou deslealdade aos mais altos deveres do funcionário para com o cargo, do cidadão para com o país.”

Um abismo separa os ideais de Ruy Barbosa dos usos e costumes da vida pública brasileira. Informação jornalística relevante é, frequentemente, considerada um abuso ou um despropósito.

A informação não é um enfeite. É o núcleo da missão da imprensa e a base da democracia. Homens públicos invocam o direito à privacidade como forma de fugir da investigação da mídia.

Entendo que o direito à privacidade não é intocável. Pode cessar quando a ação praticada tem transcendência pública. É o caso dos governantes ou candidatos a cargos públicos. Os aspectos da vida privada que possam afetar o interesse público não devem ser omitidos em nome do direito à privacidade.

Não pode existir uma separação esquizofrênica entre vida privada e vida pública. Há atitudes na vida privada que prenunciam comportamentos na vida pública. E o leitor e o eleitor tem o direito de conhecê-las.

Se assim não fosse, tudo o que teríamos para ler na imprensa seriam amontoados de declarações emitidas pelas fontes interessadas. E há informações da vida privada –e o caso Rose-Lula é emblemático- que revelam inequívoca mistura entre o público e privado.

A imprensa tem, então, não só o direito, mas o dever de invadir a vida privada do homem público. É uma clara questão de interesse da sociedade.

Carlos Alberto Di Franco, diretor do Departamento de Comunicação do Instituto Internacional de Ciência Sociais – IICS (www.iics.edu.br) e doutor em Comunicação pela Universidade de Navarra, é diretor da Di Franco – Consultoria em Estratégia de Mídia. E-mail: [email protected]

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