Indicado de Bolsonaro ao STF suspende trecho da Ficha Limpa; movimentos veem desmonte da lei
Em decisão liminar (provisória) o ministro Kassio Nunes Marques, do STF (Supremo Tribunal Federal), suprimiu um trecho da Lei da Ficha Limpa que determinava que o prazo de oito anos de inelegibilidade começava a ser contado após o cumprimento da pena.
O encaminhamento dado por Kassio foi alvo de críticas de movimentos de defesa da Ficha Limpa, que veem desmonte da lei e estímulo à corrupção.
Pela lei, o político se torna inelegível com a condenação por órgão colegiado até o trânsito em julgado —quando se esgotam todos os recursos—, segue sem direitos políticos enquanto cumpre a pena e fica inelegível por oito anos após o cumprimento.
Agora, com a decisão de Kassio, a inelegibilidade não pode ultrapassar oito anos. Antes, se o político fosse condenado a 5 anos, com mais 8 de inelegibilidade, só poderia disputar a eleição após 13 anos. Com a decisão, pode disputar a eleição passados 8 anos, e não os 13.
Como é liminar, a decisão, tomada neste sábado (19), um dia após a última sessão do STF e na véspera do início oficial do recesso do Judiciário, deve ser analisada pelo plenário da corte em 2021.
A Lei da Ficha Limpa diz que são inelegíveis “os que forem condenados, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado, desde a condenação até o transcurso do prazo de 8 (oito) anos após o cumprimento da pena” por dez tipos de crime, como aqueles contra a vida (homicídio) e a dignidade sexual (estupro), contra a economia popular, a fé pública, a administração pública (como corrupção) e o patrimônio público, contra o meio ambiente e a saúde pública, de lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores, por exemplo.
Kassio suprimiu a expressão “após o cumprimento da pena”. Na prática, isso restringe o período de inelegibilidade.
A decisão vale somente para processos de registro de candidatura das eleições de 2020 ainda pendentes de apreciação, inclusive no âmbito do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) e do STF.
“A ausência da previsão de detração [abatimento da pena total por já se ter cumprido parte dela], a que aludem as razões iniciais, faz protrair por prazo indeterminado os efeitos do dispositivo impugnado, em desprestígio ao princípio da proporcionalidade e com sério comprometimento do devido processo legal”, diz Kassio, que passou a integrar o STF em novembro deste ano, indicado pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido).
Ele argumenta ainda que “impedir a diplomação de candidatos legitimamente eleitos, a um só tempo, vulnera a segurança jurídica imanente ao processo eleitoral em si mesmo, bem como acarreta a indesejável precarização da representação política pertinente aos cargos em análise”.
O ministro atendeu a um pedido do PDT. Na ação direta de inconstitucionalidade, o partido alega que não pretende questionar os propósitos da lei, “mas tão somente assegurar que o prazo de 8 (oito) anos trazido por tal lei seja respeitado, sem o aumento indevido por meio de interpretação que viola preceitos, normas e valores constitucionais”.
A legenda diz que o trecho que acabou sendo cortado “vilipendia direitos e garantias fundamentais”, porque a interpretação da expressão tem proporcionado inelegibilidade por tempo indeterminado dependendo do tempo de tramitação do processo.
O PDT argumenta que “a antecipação do cumprimento do prazo de inelegibilidade (para a ‘condenação por órgão colegiado’) acabou por produzir uma inelegibilidade por prazo indeterminado”.
Isso porque o político se torna inelegível com a condenação por órgão colegiado até o trânsito em julgado, depois, por causa do que está previsto na Constituição, segue sem direitos políticos enquanto cumpre a pena e ainda continua inelegível por oito anos após o cumprimento da pena.
A sigla explica na ação que, como a Lei da Ficha Limpa não foi aplicada nas eleições de 2010, o efeito do trecho questionado só veio a ser sentido de maneira mais significativa nas disputas deste ano, oito anos após o início da vigência da lei, nas eleições de 2012.
De acordo com o PDT, dos 557.406 pedidos de registros de candidaturas, 2.357 foram indeferidos com base na Lei da Ficha Limpa.
A ação, porém, diz o partido, não se refere a todos estes casos, já que nem todos os indeferimentos se deram com base no trecho alterado pela decisão do ministro e que há casos em que o prazo de inelegibilidade já foi cumprido antes do marco temporal estabelecido.
A decisão gerou crítica do Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral, que viu na medida “uma articulação de forças que pretende esvaziar a lei, com ataques pontuais que visam dilacerar o seu conteúdo sob alegação de aperfeiçoá-la, tentativa essa oriunda daqueles que podem ser atingidos por ela ou que buscam poupar seus aliados”.
O movimento disse ainda, em nota, que “todas as medidas possíveis serão tomadas e o nome de todos que estão tentando destrui-la serão conhecidos”.
O juiz aposentado Márlon Reis, autor da Lei da Ficha Limpa, vê na decisão de Kassio “o maior atentado da história” à regra em seus dez anos de existência.
“Estão tentando relativizar prazos num assunto em que quem determina estes prazos são os próprios condenados. Sempre tivemos no Brasil um problema grave de réus que usam do grande sistema de recursos que temos no país, para protelar, para evitar a punição. Por isso a Lei da Ficha Limpa estabeleceu este sistema, que os oito anos só seriam contatos a partir da condenação, que sempre foi protelada pelos réus”, afirmou Reis à Folha.
O magistrado aposentado disse que a lei se aplica a crimes mais graves, com condenações maiores.
“Igualar situações que são desiguais é muito injusto. Alguém ser condenado porque teve contas rejeitadas e ficou oito anos inelegível. Ok, são oito anos. Mas alguém que cometeu um crime de estupro, de homicídio?! Eles estão igualando todo mundo, e não é igual”, disse o autor da legislação.
O juiz também lembrou que este assunto já foi enfrentado pelo STF em 2010, e a corte, por maioria declarou a constitucionalidade da lei.
“Estamos diante de uma situação curiosa, de insegurança jurídica completa em que o Supremo Tribunal Federal declarou uma lei constitucional, e agora um ministro, com todo respeito que tenho por ele, toma uma decisão isolada, monocrática, contra a corte”, declarou.
Márlon Reis disse esperar que o STF repare a situação criada agora ou com um recuo do relator do caso, Kassio, ou com a suspensão da liminar pelo presidente do STF, ministro Luiz Fux.
O advogado eleitoral Fernando Neisser disse à Folha concordar com o mérito da decisão tomada por Kassio Nunes Marques no sábado por considerar inconstitucional a não existência da detração, mas concorda que causa confusão o fato de uma decisão monocrática ir no sentido oposto ao que o plenário da corte já havia decidido anteriormente.
“Nada impede que o STF, de tempos em tempos, se debruce de novo para ter novos entendimentos. Mas uma decisão monocrática, terminado já o processo eleitoral, acaba beneficiando alguns candidatos que insistiram em recorrer, e não outros que nem se lançaram porque se entenderam inelegíveis ou se lançaram e foram substituídos por se entender que era uma situação já definida. Acaba criando uma desigualdade de condições entre candidaturas”, afirmou Neisser.
O movimento Vem Pra Rua Brasil criticou a decisão em postagens nas redes sociais.
“Depois de acabar com a prisão após [condenação] em segunda instância, a articulação macabra em Brasília é contra Lei da Ficha Limpa. É um acordo ganha-ganha. Ganham os condenados, pois ficam ‘livres’ para disputar eleições. Ganha Bolsonaro, que pode enfrentar Lula em 2022. Perde a sociedade”, diz uma das publicações.
O Vem Pra Rua Brasil também disse que Kassio Nunes Marques foi escolhido por Bolsonaro por ser “100% alinhado” e que o magistrado “estrangulou” a Lei da Ficha Limpa.
“Confiou no PR [presidente da República? Passou pano? Deu nisso!”, diz a postagem.
Na semana passada, Bolsonaro já havia sido cobrado por outro posicionamento de seu indicado ao STF. A corte decidiu permitir que o Estado imponha restrições a quem não tomar vacina contra Covid-19.
Divergindo de seus colegas, o magistrado afirmou que a vacinação obrigatória é constitucional, mas que depende de “prévia oitiva” do Ministério da Saúde e que só pode ser usada como “última medida”.
Todos outros integrantes da corte, porém, concederam autonomia a governadores e prefeitos para impor a obrigatoriedade e manteve a linha adotada pelo Supremo desde o começo da pandemia do coronavírus no sentido de esvaziar os poderes do governo federal.
Apoiadores de Bolsonaro, no entanto, criticaram Bolsonaro por causa do voto de Kassio. Demonstrando irritação, o presidente referiu-se a seus críticos como “direita burra, direita idiota, fedelho, papagaio de internet e analfabeto funcional”. Folha de SP
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