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Defendida por Bolsonaro, expansão de centro espacial de Alcântara esbarra em luta quilombola

Por Carlos Madeiro Colaboração para o UOL

Dona da mais populosa área quilombola do país, a cidade de Alcântara (MA) está no centro de um debate que desafia o projeto de expansão do CLA (Centro de Lançamento de Alcântara). Os moradores da comunidade são os descendentes de escravos, contrários à ideia de ampliação da base da Força Aérea Brasileira já anunciada durante o governo Michel Temer e defendida publicamente pelo presidente eleito, Jair Bolsonaro (PSL).

O processo de titulação da área quilombola está parado há exatos 10 anos. O último ato ocorreu em novembro de 2008, quando o Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) publicou o RTID (Relatório Técnico de Identificação e Delimitação), declarando que a área de 78 mil hectares –e onde vivem 3.350 famílias– seria ocupada por descendentes de escravos. A Aeronáutica, entretanto, quer mais 12 mil hectares do terreno para o projeto de expansão da base.

Bolsonaro defende ampliação
No último dia 7, após encontro com a cúpula da Aeronáutica, Bolsonaro confirmou que uma das pautas foi o projeto de expansão da CLA. “Da minha parte, vai avançar, sim”, disse a jornalistas, na saída da reunião. Em publicações em suas redes sociais, dois dias após o encontro, Bolsonaro não só falou que pretende ampliar a base, como apresentou a ideia de capacitar quilombolas a trabalharem no local.

O que nós queremos fazer é treinar os quilombolas, aquela garotada, para trabalhar na base de lançamento, inserir eles nesse mercado promissor, dar meios para se libertar, não viver mais de favores de estado. O Marcos Pontes [futuro ministro da Ciência] quer fazer também. Como a gente pode se furtar a lançar foguetes de outros países?”

Jair Bolsonaro, presidente eleito do Brasil

A assessoria de imprensa da transição do governo foi procurada pelo UOL para comentar o projeto do futuro governo para o local, mas não respondeu aos contatos da reportagem.

A ideia de lançar foguetes de outros países já é defendida pelo atual governo. Em novembro de 2017, o então ministro da Defesa, Raul Jungmann, disse, em evento em Washington (EUA), que o governo já debatia um projeto para o uso comercial do Centro de Alcântara não só pelos norte-americanos, mas também citou o interesse de países como China, Rússia, Israel e França.

Procurada na quarta-feira (14), a Aeronáutica informou que não poderia se pronunciar sobre o projeto de expansão até a data de publicação da reportagem.

Área nobre para astronáutica

Proximidade com linha do Equador é uma das vantagens geográficas da base

O CLA foi criado em 1983 e ocupa uma área de 8.713 hectares. A área foi escolhida à época da ditadura militar por ter boas condições geográficas, especialmente a proximidade com a linha do Equador –o que possibilita lançamentos em órbita de baixa inclinação e que economizam energia para manobras no espaço.

Segundo comunicado da Aeronáutica em junho de 2017, o objetivo da expansão da área é “consolidar o centro e adquirir competência no lançamento de satélites que atendam a demanda de projetos relacionados, como o PESE (Programa Estratégico de Sistemas Espaciais) e futuras versões do VLS (Veículo Lançador de Satélite)”.

Incra: terra pertence a quilombolas
Mas a questão envolve os moradores tradicionais da região. O RTID do Incra comprovou a existência de 110 povoados quilombolas na área de 78 mil hectares.

“As terras identificadas e delimitadas neste Relatório Técnico, constantes da planta e memorial descritivo, são reconhecidas como terras que pertencem à Comunidade Remanescente de Quilombo de Alcântara”, diz o Diário Oficial da União do dia 4 de novembro de 2008.

Em abril de 2010, a Aeronáutica e o Ministério da Defesa apresentaram contestação ao relatório e houve a suspensão do processo de titulação para instrução de procedimento de conciliação na AGU (Advocacia-Geral da União). A discussão, porém, foi encerrada sem desfecho. A demora levou o MPF (Ministério Público Federal) do Maranhão a ir à Justiça pedir o seguimento no processo de titulação das terras.

Em 2017, a Casa Civil da Presidência assumiu a conciliação do assunto. Além do órgão, a Secretaria Nacional de Políticas de Igualdade Racial e diversas instituições públicas foram consultadas para a definição de uma proposta de conciliação.

“O processo administrativo encontra-se na sede do Incra, aguardando as tratativas de conciliação mediadas pela Casa Civil”, informou o órgão de política agrária do governo federal.

MPF cobra titulação
Para o MPF, a demora na titulação é hoje o maior problema jurídico do local. Recentemente, o processo que cobra do Incra o andamento da titulação foi negado em primeira instância e está em grau de recurso no Tribunal Regional. “O que se busca é que o processo judicial ande para responsabilizar, de fato, o Incra pelo atraso e dar seguimento ao processo de titulação da comunidade”, afirma o procurador da República Hilton Melo.

Na visão do MPF, o novo projeto do governo para a área não foi apresentado a moradores da região.

Esse projeto tem muitas incertezas dos verdadeiros propósitos, não é uma pauta tão aberta e transparente. O que se tem exigido é que o governo sequer inicie qualquer projeto, qualquer planejamento, sem conversar com os verdadeiros proprietários da terra, que são os quilombolas.”

Hilton Melo, procurador da República no Maranhão

“O MPF não tem recusas ou negativas ao projeto espacial brasileiro, inclusive ele pode ser desenvolvido com bons olhos”, acrescenta Melo. “O que precisa é ser feito como a legislação permite, e isso não é com o governo federal se colocando como dono da área para dar a destinação que bem queira.”

Terra concedida antes da abolição
Para a pesquisadora Patrícia Portela Nunes, da Universidade Estadual do Maranhão, os critérios fundiários não são suficientes para compreender a antiguidade e complexidade do caso.

“Diferentemente de outras regiões do país, em Alcântara, a falência das grandes propriedades ocorreu bem antes da abolição da escravatura”, observa.

Há um conjunto de trabalhos de pesquisa que ressaltam a impossibilidade de tratar as reivindicações de direito das famílias de atingidos pela base espacial através do critério fundiário, em face da impossibilidade de se reconstituir, por dados cartoriais, o conjunto de famílias que historicamente permaneceu em Alcântara, após o processo de desestruturação dos engenhos e fazendas de algodão do período colonial.”

Patrícia Portela Nunes, pesquisadora

Em suas pesquisas, Patrícia percebeu que os quilombolas relatam um “conjunto de efeitos sociais” produzidos pelo deslocamento compulsório para áreas chamadas “agrovilas”, criadas entre 1986 e 1987, após a construção da base.

“Essas agrovilas, além de estarem impedidas pelos militares de acesso ao mar, possuem terras impróprias ao cultivo”, diz a pesquisadora. “Ressaltam, ainda, que o local de remanejamento para a implantação das agrovilas provocou desastre ecológico, uma vez que foi realizado em cima da cabeceira de rios.”

Moradores temem nova saída

População da região teme possíveis impactos de projeto do governo para a base

Em meio às incertezas do que virá, os quilombolas afirmam não concordar com um novo deslocamento. A maioria dos moradores da região vive da agricultura de subsistência e da pesca e entende que uma saída da região litorânea seria muito ruim para todos.

Em 16 de agosto de 2001, o problema dos quilombolas foi denunciado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, da OEA (Organização dos Estados Americanos). À época, a comissão viu diversas violações aos direitos humanos. A mesma comissão voltou neste mês a Alcântara, durante visita ao país, para uma nova apuração. Um novo relatório será divulgado em breve.

Segundo Danilo Serejo, do Movimento dos Atingidos pela Base Espacial de Alcântara, um novo deslocamento atingiria mais 150 comunidades quilombolas. “Mas todas as demais seriam afetadas, porque, mesmo as que não seriam remanejadas, vão recepcionar em suas áreas”, diz, sem esconder a preocupação com declarações do presidente eleito.

O representante dos quilombolas afirma ainda que a comunidade já decidiu que não aceita nenhum tipo de remanejamento, seja por indenização ou relocação. “Já tivemos essa experiência nos anos 1980, quando foram remanejadas 312 famílias de 23 povoados e que não foram devidamente reparadas. Até hoje elas sofrem”, relata.

Já Antônio Marcos Diniz, presidente da Associação dos Trabalhadores Rurais de Alcântara, afirma que a população da região pretende resistir a qualquer novo projeto que venha a desalojar famílias.

“É uma situação um pouco difícil, mas vamos resistir até o final. A gente tem ouvido alguns boatos de ameaças de nova realocação, de uma possível conversa entre o novo governo daqui e dos EUA”, afirma Diniz. “Como recentemente recebemos a OEA aqui de novo, estamos com esperança de um desfecho positivo.”

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