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A mentira contada pela foto de Lula e Sarney no hospital

Por Reinaldo Azevedo (Veja)

Essa gente brinca com a nossa generosidade, com o nosso bom senso, com a nossa temperança. O presidente do Senado, José Sarney (PMDB-AP), está internado no Hospital Sírio-Libanês, onde se submeteu a um cateterismo com implantação de um stent. O Sírio — como é conhecido — precisa tomar cuidado, aliás, para não se transformar numa espécie de Sanatório do Poder. Tenho cá as minhas dúvidas se esse contínuo processo de espetacularização da doença de figurões da República, de que o hospital serve de cenário, faz bem à saúde da instituição, com seus médicos estelares descendo ao térreo para receber autoridades, numa espécie de rendição do sacerdócio da ciência à mundanidade do mando. Nas coletivas em que se tratava do câncer de Lula, por exemplo, havia mais homens de branco para dar entrevistas do que repórteres para ouvir o que eventualmente tinham a dizer. Sei que o Sírio é um hospital sério e não estou pondo isso em dúvida. Mas não terá chegado a hora de pôr um freio no excesso de exposição? Uma questão a se pensar. Adiante.

O Apedeuta foi visitar Sarney no leito. E temos, que surpresa!, mais uma foto de Ricardo Stuckert, do Instituto Lula, com a composição, a luz e o enquadramento meticulosamente estudados para remeter, reitero, àquelas imagens da Benetton, tornadas célebres pelo fotógrafo italiano Oliviero Toscani. Vejam. Volto em seguida.

Voltei

Para que isso? O que se aproveita dessa imagem? Qual é a sua dimensão ou seu interesse público? O que se pretende senão construir a imagem da “humana fragilidade do poder”, apelando ao sentimentalismo? Nada poderia ser mais falso do que isso! Ao contrário: as duas figuras aparentemente frágeis são dois tubarões da política — e só por isso suas respectivas doenças passam por esse processo de espetacularização.

Para ter direito a um leito no Sírio Libanês e ao aporte midiático que o cerca é preciso ser alguém muito além da fragilidade que a foto sugere. Atenção! Não estou aqui barateando as tolices da luta de classes, não, ou sugerindo que ambos se tratem no SUS, que o Apedeuta já chegou a ver “perto da perfeição”. Meu ponto é outro. Estou é acusando uma operação que consiste em criar uma imagem que falsifica a verdade. Ali estão dois oligarcas — ou, se quiserem, duas versões do patrimonialismo brasileiro. Ambos representam esquemas de poder que põem a serviço de grupos o bem público, seja esse bem material ou institucional. Quanto as próprias leis são torcidas para atender a interesses ou quando se faz um esforço em favor de sua aplicação seletiva, é a República que está indo para o brejo.

Torço para que os indivíduos Lula e Sarney se recuperem. Poucas coisas são tão desprezíveis na minha ordem de valores quanto folgar com a doença alheia ou torcer para que um adversário, desafeto, rival — ou simplesmente alguém de quem não se gosta — seja tirado de circulação por algum impedimento trágico. É mostra de covardia moral e intelectual.

Eu quero mais é que esses dois se recuperem de suas respectivas doenças. Mas não abro mão de denunciar a outra doença que uma imagem como a que vai acima revela: o nosso déficit de cultura democrática. Não é o Senado que passou por um cateterismo, mas o homem José Sarney. Como tal, o decoro recomenda o resguardo que a qualquer outro paciente é cabido e devido. Não é um ex-presidente da República e presidente de honra de um partido que se trata de câncer, mas o indivíduo Luiz Inácio da Silva. Notem que, nesse caso, omiti até a palavra “Lula”, um apelido incorporado a seu nome de batismo em razão da política. Também no seu caso, o decoro perdeu para a politização da doença.

Desagradável

Uma foto como essa requer a colaboração dos modelos. Estão a obedecer instruções precisas do fotografo. Depois de ajustados a cena, o enquadramento, a luz, o foco, o profissional do outro lado da câmera dá a ordem: “Ajam normalmente!” Ora, que normalidade pode haver numa situação assim?

Não descarto que exista afeto mútuo entre Lula e Sarney, a despeito de tudo o que o petista já disse sobre o peemedebista e sua família. É a amor fraterno que nasce do mutualismo político, não é? O Apedeuta submeteu a biografia de seu antigo desafeto à lavanderia de reputações do petismo, que tanto lava como suja biografias, a depender do interesse. E Sarney emprestou a Lula o domínio daquelas áreas do Congresso infensas a qualquer processo de modernização. Assim se juntaram dois atrasos: o contemporâneo e o arcaico.

De resto, questiono o gosto de uma imagem assim, que já vai virando um clichê da política brasileira, sempre pela lente de Ricardo Stuckert, sempre no Sírio-Libanês e sempre com o mesmo propósito. Todas as fotos são derivações de uma campanha da Benetton em que uma família chora a morte iminente de um paciente de Aids. Que importa se esse tipo de exploração busca ganhar dinheiro, votos ou simpatia popular? É indecorosa em qualquer caso. Vejam. Volto para arrematar.

Lula e Dilma visitam José Alencar: o câncer como política

Aí chegou a vez de Dilma e Mantega fazerem uma visita a Lula

A inspiração das fotos brasileiras é da campanha da Benetton, só que suavizada pelo nosso jeitinho...

Voltei

Ousado mesmo, então, seria algo como a montagem em que Barack Obama e Hugo Chávez aparecem trocando um beijo. Vejam.

Mas falo de ousadia para valer, entendem? No dia em que Lula aparecer trocando uma bicoca com Sarney ou com outro oligarca qualquer, então aplaudirei, enfim, uma imagem que traduz a verdade do que vai pelo país.

Não publicarei comentários que façam qualquer alusão desairosa à saúde das personagens das fotos. Os petralhas costumam mandar as coisas mais escabrosas na esperança de que sejam publicadas para, então, boquejar: “Vejam o que ele deixou passar!”

Não! Nós, por aqui, torcemos pela saúde das pessoas e pela saúde das instituições.

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