Da CoSP a Brasília: Por que a Conferência da Convenção da ONU contra a Corrupção não é “assunto distante”

CÁSSIUS GUIMARÃES CHAI*
Quando se fala na Conferência dos Estados Partes da Convenção da ONU contra a Corrupção (CoSP), a tendência, no Brasil, é tratar o tema como algo longínquo, confinado a salas de conferência em Viena, Doha ou Atlanta. No entanto, as decisões tomadas nesse fórum internacional desenham, por vias muitas vezes discretas, a moldura normativa e política em que promotores, juízes, advogados e órgãos de controle enfrentam diariamente crimes econômicos e tributários.
O Brasil ratificou a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção (UNCAC) em 2005, por meio do Decreto Legislativo 348, e a promulgou pelo Decreto 5.687, de 31 de janeiro de 2006. Ao fazê-lo, assumiu compromissos jurídicos concretos em matéria de prevenção, criminalização, cooperação internacional e recuperação de ativos. Essa adesão não é meramente simbólica: obriga o país a alinhar sua legislação e suas instituições a padrões internacionais definidos e monitorados justamente pela CoSP.
Não é coincidência que, após a internalização da UNCAC, o ordenamento brasileiro tenha avançado com normas como a Lei 12.846 de 2013, que inaugura a responsabilização objetiva administrativa e civil de pessoas jurídicas por atos contra a administração pública nacional e estrangeira, com sanções que incluem multa de até 20 por cento do faturamento bruto e instrumentos de leniência. Também não é acidental a consolidação, no mesmo período, de estratégias como a ENCCLA, rede que articula cerca de uma centena de instituições dos três Poderes e do Ministério Público para formular ações coordenadas de combate à corrupção e à lavagem de dinheiro.
As resoluções da CoSP, ao detalharem boas práticas em temas como beneficiário final, acordos de leniência, cooperação jurídica internacional e recuperação de ativos, servem de parâmetros de referência para o desenho de leis internas, programas de integridade e orientações administrativas. O Brasil, ao mesmo tempo em que participa da CoSP, passa a ser objeto de revisão entre pares. Outros Estados avaliam como o país tipifica delitos, conduz investigações, coopera internacionalmente e executa medidas patrimoniais. Essa dinâmica cria incentivos reputacionais e institucionais que pressionam por aperfeiçoamentos internos.
Nesse cenário, o combate aos crimes econômicos e tributários ganha centralidade. A UNCAC exige a criminalização de condutas como suborno, peculato, obstrução da justiça e, em sua dimensão patrimonial, estimula mecanismos eficazes de recuperação de bens. No Brasil, o sistema penal econômico se estrutura, entre outros pilares, na Lei 8.137 de 1990, que define os crimes contra a ordem tributária, econômica e contra as relações de consumo, e na Lei 9.613 de 1998, que disciplina os delitos de lavagem de dinheiro.
Decisões recentes do STJ e do STF consolidam a compreensão de que delitos tributários podem servir como crimes antecedentes de lavagem, reforçando a ideia de que a sonegação praticada em larga escala não é “infração de mera mora fiscal”, mas peça de engrenagem de estruturas de ocultação e blindagem patrimonial. Essa leitura dialoga diretamente com o espírito da UNCAC e com as orientações da CoSP, que insistem na necessidade de atacar fluxos financeiros ilícitos e estruturas societárias opacas.
O Ministério Público estadual ocupa aqui uma posição estratégica. A criminalidade econômica e tributária, ainda que muitas vezes transnacional, manifesta-se de modo concreto em empresas localizadas, em esquemas de emissão de notas frias, em cartórios que lavram negócios simulados, em fraudes de ICMS que atravessam fronteiras estaduais para aproveitar benefícios fiscais e brechas de fiscalização. É o promotor de justiça da comarca, ou da capital, quem está mais próximo dos fatos, das vítimas indiretas e das distorções que a evasão tributária produz sobre políticas públicas locais.
A CoSP 11, marcada para ocorrer em Doha, em dezembro de 2025, será um momento oportuno para recolocar o Brasil diante de um espelho exigente. O país precisará demonstrar que seus avanços legislativos se traduzem em investigações sólidas, condenações consistentes e, sobretudo, na recuperação de ativos em benefício da sociedade. Essa demonstração passa pela atuação cotidiana dos Ministérios Públicos estaduais, que enfrentam crimes tributários estruturados, esquemas empresariais de fraude e redes de lavagem que articulam atores locais e transfronteiriços.
Em vez de enxergar a CoSP como uma vitrine distante frequentada apenas por diplomatas, seria mais honesto admitir que as discussões de Doha atravessam as mesas de trabalho de promotores que desmontam esquemas de sonegação, recuperam créditos bilionários e protegem a integridade das finanças públicas. A distância entre a conferência internacional e o processo criminal que tramita em uma vara estadual é menor do que parece.
*Acadêmico efetivo e perpétuo da Academia Maranhense de Ciências, Letras e Artes Militares (Amclam), na cadeira 40, patroneada pelo cientista Nina Rodrigues; promotor de Justiça, titular da 1ª Promotoria de Justiça Regional da Defesa das Ordens Tributária e Econômica – MPMA; professor titular da Universidade Federal do Maranhão; professor permanente do PPGD/Faculdade de Direito e Vitória; pesquisador G20 Research Center Beijing Normal University.
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