Dentro de mim há deuses, céus e infernos

RUY PALHANO
Psiquiatra, membro da Academia Maranhense de Medicina e Doutor Honoris Causa – Ciências da Saúde – EBWU (Flórida EUA).
Na frente de uma batalha devastada pela desigualdade e competitividade, no afã de nos mantermos vivos, podemos estar, nesta ocasião, diante de nossa própria interioridade. Entre bombas simbólicas, o silêncio pesado e a angústia de não sabermos se sobreviveremos, surge dentro de nossas cabeças a frase: “todos os deuses, os céus e os infernos estão dentro de cada um de nós”. A princípio, esta frase poderia soar como uma metáfora poética lançada ao vento, mas guarda em si um dos mais antigos segredos da humanidade: o território definitivo onde as batalhas essenciais são travadas nunca é o campo externo, mas o íntimo de cada um. O homem, em guerra existencial, descobre-se finalmente diante do que sempre evitou: sua própria profundidade.
Esta frase sugere, antes de tudo, que o ser humano carrega em seu interior a totalidade das possibilidades existenciais. O “céu” simbolicamente é a dimensão das virtudes, da coragem, dos princípios que o elevam; o “inferno” representa o desespero, a covardia, a ira, o descontrole; os “deuses” não são entidades externas, mas potências arquetípicas — força, sabedoria, fraternidade, julgamento, compaixão — que, à maneira de Jung, habitam a psique e se manifestam em momentos-limite. Os soldados desta guerra existencial não lutavam apenas contra o inimigo que encontra no caminho; lutam contra seus próprios abismos, seus medos de falhar, seus fantasmas familiares, sua culpa de não fazer o bem e sua dúvida sobre se algum dia teriam paz.
É nesses instantes críticos que o homem percebe que o drama humano sempre foi interno. O campo externo apenas aciona, convoca e expõe os “deuses e demônios” internos que carregamos há milênios. Em tempos de paz, eles dormem, silenciosos; em tempos de guerra, despertam com violência. Por isso, quando um líder sussurra a frase acima, o que ele está realmente dizendo é: “não procure fora de ti aquilo que só pode ser resolvido dentro de ti”. A guerra externa ou simplesmente a luta pela vida apenas intensifica a necessidade da guerra interna, aquela luta silenciosa entre a razão e o instinto, entre o dever e o medo, entre a vida que se quer preservar e a morte que se anuncia.
Cada homem, no fundo, traz consigo uma espécie de panteão interior. Há um deus da coragem, que nos impulsiona para o combate, para a ação, para o risco. Há um demônio da hesitação, que nos paralisa e nos faz temer nossa própria força. Há um céu de esperança, que ilumina o caminho mesmo quando a realidade parece definitivamente perdida. E há um inferno de desespero, que ameaça devorar tudo quando a dor se torna maior do que a fé. Em cada decisão, em cada instante dramático, esses elementos travam disputas que ninguém vê, mas que determinam tudo.
Historicamente, esse duplo movimento interno é universal. Os gregos já sabiam que o herói não se faz pela força do braço, mas pela capacidade de dominar seus demônios internos. Aquiles tinha sua fúria; Ulisses, sua astúcia e suas tentações; Hércules, seus impulsos e suas culpas. Cada um deles representava a luta eterna do homem consigo mesmo. Cada guerra interior moldava as guerras exteriores. As narrativas antigas apenas personificaram esse universo psíquico que hoje a psicologia profunda localiza no interior humano. Os deuses e os demônios nunca estiveram no céu ou no submundo — sempre viveram dentro de cada um de nós.
Ao mesmo tempo, a frase “dentro de mim há Deuses, céus e infernos” remete à responsabilidade que cada ser humano carregar sua própria construção moral. Se o céu está dentro de mim, então a virtude não é um dom, mas uma conquista. Se o inferno está dentro de mim, então o mal não é um destino, mas uma possibilidade que precisa ser vigiada. E se os deuses estão dentro de mim, então cada força que me move — amor, ódio, coragem, medo, honra, desespero — é parte de um complexo sistema psicológico que exige consciência. Nada é tão humano quanto reconhecer que o inimigo mais perigoso é sempre aquele que habita o silêncio da nossa alma.
A guerra de qualquer tipo, entre estas a existencial, portanto, funciona como metáfora de todas as crises humanas. Cada pessoa enfrenta suas batalhas: doenças, frustrações, perdas, fracassos, culpas, dilemas existenciais. E em cada uma delas, o que define o resultado não é a força do obstáculo, mas a potência do universo interno de cada um. Há pessoas que, diante de pequenas adversidades, desabam porque seus demônios internos são maiores do que o problema. Outras, diante de situações atrozes, se erguem porque acessam um céu interior que as sustém. A frase resume esse enigma humano: somos maiores do que pensamos e mais frágeis do que imaginamos.
O céu interior significa esperança, equilíbrio, amor, transcendência; o inferno interior significa desespero, ódio, impulsividade, autodestruição; e os nossos deuses internos representam nossos arquétipos — coragem, sabedoria, compaixão, disciplina, justiça — que emergem como guias quando somos confrontados por crises. Não existe ser humano que não carregue esse trio: um pedaço de céu, um pedaço de inferno e um panteão de forças em permanente disputa. A maturidade consiste em aprender a governá-los, como um rei sábio governa com respeito e carinho seus súditos.
A frase revela, ainda, que nenhuma salvação virá de fora. Não é a família distante, nem a pátria, nem os outros ao seu redor que resolverão os dramas existenciais essenciais. É o indivíduo quem precisa decidir como interpretar sua dor, sua angústia e como enfrentar seu medo, como romper a paralisia e como proteger e sustentar sua honra. A guerra existência apenas torna visível aquilo que já estava dentro: a coragem ou a covardia, a lealdade ou o egoísmo, a serenidade ou o descontrole. E ao perceber isso, o homem compreenderá que a geografia definitiva da existência é interna.
Ao mesmo tempo, há uma dimensão de transcendente nessa reflexão. Quando dizemos que “os deuses estão dentro de você”, lembramos que a humanidade há milênios projeta para fora o que não compreende por dentro. O divino não é uma entidade externa, mas a capacidade humana de ultrapassar seus limites. O inferno não é um lugar geográfico, mas o estado psíquico de angústia e escuridão que aprisiona a alma em momentos de desespero. E o céu não é um destino longínquo e glorioso, mas o estado de serenidade, de decência, de amor e dignidade que emerge quando encontramos sentido mesmo em meio à dor.
Em síntese, a frase acima funciona como um convite à autogovernança. A guerra termina, mas o homem continua com seus deuses e seus demônios. A vitória ou a derrota exterior é menos decisiva do que a vitória ou a derrota interna. Se o homem aprende a governar seu céu e seu inferno ( a si mesmo), ele pode atravessar qualquer sofrimento da vida com dignidade. Se ele é governado por seus demônios, nem o melhor dos destinos o salvará. É por isso que momentos críticos sempre revelam quem somos. Não há fugas possíveis quando se está diante de nós mesmos.
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