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A palavra, a ação e a (in)coerência

RUY PALHANO
Psiquiatra, membro da Academia Maranhense de Medicina e Doutor Honoris Causa – Ciências da Saúde – EBWU (Flórida EUA).

Há uma antiga inquietação que acompanha o ser humano, desde que aprendeu a articular sons e gestos: a relação entre o que diz e o que faz. Na história da civilização, a palavra sempre foi considerada um dom divino, um instrumento de criação e destruição, de vínculo e de poder. Falar é mais do que emitir sons — é expressar o pensamento, é afirmar-se no mundo, é tentar dar sentido às vivências e ao caos da existência. No entanto, falar também pode ser uma forma de disfarce, um refúgio retórico que protege da ação concreta. Desde os tempos de Sócrates, a filosofia já advertia que o verbo sem o gesto é vazio, e que a verdade de um homem não se mede por aquilo que proclama, mas por aquilo que realiza.

Dialeticamente, podemos dividir esta questão em três partes: a primeira, corresponde ao grupo de pessoas que falam muito, isto é, são os que constroem suas vidas sobre o pilar da palavra. São oradores, retóricos, discursivos, muitas vezes inteligentes e persuasivos, mas frequentemente distantes da concretude. Vivem cercados por um universo de promessas e intenções, e constroem castelos de ar sustentados pela eloquência. Falam sobre ética, mas não a praticam; exaltam a bondade, mas não a exercem. São, na visão aristotélica, aqueles em quem a phronesis (sabedoria prática) não acompanha a logos. Tornam-se reféns de suas próprias narrativas, e a distância entre o dizer e o fazer transforma-se em terreno fértil para a hipocrisia social.

O excesso de palavra tende a criar uma ilusão de movimento. É como se falar substituísse o agir, como se o discurso bastasse para realizar. Pierre Bourdieu chamou essa dimensão de “poder simbólico”, pois aquele que domina a linguagem pode dominar o imaginário. Entretanto, quando esse poder é utilizado sem correspondência ética, degenera em manipulação e engano. É o império do verbo sobre o gesto, a supremacia da aparência sobre a substância. Byung-Chul Han, ao analisar a sociedade contemporânea, observa que vivemos numa era da superexposição e da fala incessante — todos têm voz, mas poucos têm sentido; todos opinam, mas quase ninguém transforma.

No polo oposto, encontramos o segundo grupo — o dos homens e mulheres da ação. São pragmáticos, silenciosos, executores. Fazem, produzem, concretizam, mas pouco falam. Em suas vidas, a palavra cede lugar ao gesto, o discurso à prática. São aqueles que constroem o mundo, muitas vezes sem deixar registro de sua autoria. Neles, há uma força material, uma ética do trabalho, uma fé na realização. Contudo, o risco desse tipo humano é a alienação do sentido: ao agir sem refletir, pode-se cair no automatismo, no fazer mecânico, desprovido de consciência crítica. Hannah Arendt, em A Condição Humana, advertiu que a ação sem reflexão transforma o homem em mero executor, e a fala sem ação, em mero espectador.

Esses seres da ação, embora necessários, frequentemente perdem a dimensão simbólica do existir. Sua linguagem é o fazer; suas construções, as palavras que deixam no mundo. São, em certo sentido, herdeiros da cultura técnica e do espírito moderno — homens que acreditam que o mundo se resolve com produtividade, resultados e evidências. Porém, sem a palavra, sem o discurso que dá sentido, o gesto se torna cego. A vida corre o risco de transformar-se em trabalho contínuo, sem transcendência nem propósito. É o fazer pelo fazer, o ativismo sem alma.

Entre esses dois extremos, há um terceiro grupo, mais raro, e talvez mais nobre: o dos que conseguem unir a palavra à ação, o verbo ao gesto, o pensamento à prática. Neles, há uma coerência essencial, uma harmonia interior que faz da vida uma expressão íntegra. Dizer e fazer se entrelaçam como partes de uma mesma verdade. São os que vivem a palavra que pronunciam, e que não necessitam de muito discurso porque o próprio existir já é testemunho. Kierkegaard chamaria esse grupo de os “autênticos”, aqueles que fazem da existência um projeto de fidelidade a si mesmos. A coerência é, aqui, uma forma de ética vivida, não pregada.

A coerência entre o dizer e o fazer é um dos sinais mais elevados da maturidade humana. Exige coragem para ser fiel à verdade interior, exige responsabilidade diante dos outros; e, sobretudo, exige humildade. Pois quem age de acordo com o que diz, reconhece a vulnerabilidade da própria palavra. Para esses seres, o silêncio também é fala, e o gesto também é discurso. Suas palavras não precisam ser muitas, porque sua vida já fala por eles. São aqueles que compreendem que o exemplo é o mais profundo dos discursos.

Em uma época dominada pela performance e pela estética da aparência, o homem coerente é um ser subversivo. Ele contraria a lógica do marketing de si mesmo, da autopromoção e da superficialidade. Ele vive o que acredita, mesmo quando isso o isola. E, justamente, por isso, sua presença tem força moral. Viktor Frankl dizia que a liberdade suprema do ser humano é escolher sua atitude diante das circunstâncias — e nisso reside a essência da coerência.

Essas três dimensões da expressão humana — o falar, o agir e o integrar — coexistem em todos nós, em proporções variáveis. Há momentos da vida em que precisamos da palavra para convencer, ensinar ou consolar; outros em que é preciso calar e agir. Mas o ideal humano talvez esteja na fusão entre as duas potências. A fala é a semente; a ação, o fruto. Uma sem a outra é estéril. A verdadeira humanidade nasce quando o verbo se encarna, quando o discurso se transforma em gesto.

Essa fusão entre linguagem e ação é também o que sustenta a confiança social. Instituições, famílias e nações desmoronam quando o que se promete não se cumpre, quando o que se diz não se faz ou ainda se diz uma coisa e se faz outra. A coerência, portanto, não é apenas virtude individual — é cimento civilizacional. É ela que garante a credibilidade, que dá peso à palavra e honra ao compromisso. Confúcio já advertia que, quando a linguagem perde o sentido, a sociedade perde a ordem. A palavra sem ato é ruído; o ato sem palavra é barbárie.

O desafio da modernidade é reencontrar esse equilíbrio. Vivemos entre falas ruidosas e ações dispersas, entre discursos morais e práticas contraditórias. A sociedade do espetáculo, como denunciou Guy Debord, transformou o dizer em espetáculo e o fazer em marketing. O homem contemporâneo fala demais e faz de menos; e quando faz, o faz para ser visto, não para ser justo. Nesse contexto, a coerência tornou-se revolucionária.

Talvez, por isso, o verdadeiro humanismo hoje consista em alinhar o que se pensa, o que se diz e o que se faz. A autenticidade — essa palavra tão maltratada — é o ponto de encontro entre a palavra e a ação. O ser humano que fala o que vive e vive o que fala reconcilia o verbo com o mundo, a ética com a estética, a ideia com o gesto. Ele representa a superação das dicotomias modernas e a restauração de um valor antigo: o da integridade.

Em última análise, somos aquilo que comunicamos — não apenas pelo que dizemos, mas pelo modo como vivemos. A expressão humana é um espelho da alma, e a coerência é sua imagem mais nítida. O verbo só é verdadeiro quando se faz carne, e a ação só é justa quando nasce de uma palavra verdadeira. Entre o falar e o agir, está o humano — esse ser que tenta, com esforço e contradição, fazer da própria vida uma forma de dizer. É nesta coerência, falar e fazer, que reside nossas virtudes e as bases na construção de nossa segurança e conquistas.

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