Fechar
Buscar no Site

“Desculpe, foi sem querer, me perdoe”

RUY PALHANO
Psiquiatra, membro da Academia Maranhense de Medicina e Doutor Honoris Causa – Ciências da Saúde – EBWU (Flórida EUA).

Houve um tempo em que as frases acima tinham o poder de restabelecer laços humanos afetados ou mesmo rompidos. Bastava um pedido sincero, um olhar constrangido, uma palavra tímida e verdadeira, para que o outro percebesse a intenção de reparar o erro e suavizar o impacto do que fora dito ou feito. Hoje, porém, essas expressões parecem ter perdido o valor simbólico que sustentava a reconciliação. Tornaram-se relíquias de um tempo em que a linguagem ainda carregava humildade.

O ato de pedir desculpas, historicamente, está enraizado na própria noção de convivência humana. Em sociedades antigas, o pedido de perdão não era apenas um gesto moral, mas também um ritual de reintegração comunitária. Entre gregos e romanos, a reparação pública e a confissão possuíam valor social. Na tradição cristã medieval, o perdão era o caminho da purificação da alma. Já na modernidade, a ética laica herdou esse princípio e o traduziu em valores de civilidade e empatia.

O sociólogo polonês Zygmunt Bauman, ao descrever o fenômeno da modernidade líquida, destacou que vivemos em um tempo de laços frágeis, identidades fluidas e vínculos descartáveis. Nesse contexto, o pedido de desculpas perdeu densidade, porque a própria ideia de compromisso se tornou efêmera. O indivíduo pós-moderno evita reconhecer falhas não por maldade, mas por medo de revelar vulnerabilidade. A sociedade do desempenho e da aparência exige perfeição e força — e, portanto, o arrependimento passou a soar como sinal de fraqueza ou imperfeição.

Nas redes sociais, esse quadro se acentua. O “me perdoe” se transforma em ato performático: um pedido feito não ao outro, mas ao público, esperando aprovação, curtidas e validação simbólica. O filósofo francês Gilles Lipovetsky, em A Era do Vazio, já apontava que o mundo contemporâneo vive sob o império do narcisismo, onde as emoções se tornaram superficiais e a sinceridade foi substituída pela aparência. Assim, até o arrependimento virou um espetáculo de autoimagem.

Há, portanto, um anacronismo moral em curso: palavras que pertencem a uma linguagem da alma — “desculpe”, “foi sem querer”, “me perdoe” — soam estranhas em uma sociedade dominada pela velocidade, pela pressa e pela insensibilidade. Como observa Edgar Morin em Os Sete Saberes Necessários à Educação do Futuro, perdemos a capacidade de compreender o outro na sua complexidade, reduzindo a convivência à lógica da utilidade.

Essa erosão da empatia não é apenas uma consequência cultural, mas um sintoma civilizatório. O filósofo Charles Taylor, em As Fontes do Self, lembra que a modernidade redefiniu a identidade humana em torno do indivíduo autônomo e autorreferente, desligado de uma comunidade moral compartilhada.  Nesse novo paradigma, o erro do outro é visto como afronta pessoal, e o perdão como capitulação. A ética da convivência cedeu lugar à ética da autoafirmação.

A psicologia contemporânea, por sua vez, observa o preço emocional dessa transformação. Erich Fromm, em A Arte de Amar, já advertia que o amor e a empatia não sobrevivem em ambientes de competição e egocentrismo. Quando o sujeito vive voltado apenas para a própria imagem, perde a sensibilidade de perceber o sofrimento que causa. O “foi sem querer” já não toca o outro porque o outro, endurecido por desconfianças e ressentimentos, tornou-se incapaz de acreditar na boa-fé alheia.

Do ponto de vista antropológico, as expressões de perdão sempre cumpriram uma função ritual: eram pontes simbólicas para restabelecer a harmonia social afetada. Ao abolir essas pontes, a sociedade moderna mergulhou em um vazio relacional. Como lembra Sigmund Freud em O Mal-Estar na Civilização, a vida em comunidade exige o sacrifício de parte das pulsões individuais em nome da coexistência. Quando esse pacto simbólico se rompe, a agressividade se volta contra o outro e, por fim, contra si mesmo.

A filósofa Hannah Arendt, em A Condição Humana, advertia que o perdão é o único gesto capaz de interromper o ciclo de ações e reações que aprisiona os homens em suas próprias faltas. Sem perdão, dizia ela, a história se torna uma repetição de ressentimentos e vinganças. Quando o “me perdoe” deixa de ecoar, o tempo ético se quebra: o passado não pode ser reparado, o presente se torna hostil e o futuro, uma sucessão de distâncias e suspeitas.

A cultura contemporânea, ao valorizar a culpa, a exposição e a autopromoção, esvaziou o campo da compreensão. O sujeito moderno é ensinado a justificar-se, não a reconhecer-se. O erro tornou-se crime; o arrependimento, um protocolo. Como resultado, a palavra perdeu seu poder de cura. Em um mundo de discursos inflamados e emoções aceleradas, o perdão deixou de ser gesto de reconciliação para se tornar expressão de fraqueza.

Historicamente, expressões de arrependimento acompanham a humanidade desde os primeiros textos religiosos e literários. Em narrativas bíblicas e clássicas, o pedido de perdão era parte fundamental da vida ética. No entanto, em menos de um século, desenvolvemos uma espécie de surdez moral. A palavra “desculpa” já não consola nem reconcilia: tornou-se ruído na pressa e no individualismo que dominam o século.

Vivemos, portanto, em uma era de anestesia ética. As pessoas pedem perdão sem sentir e ouvem pedidos de perdão sem escutar. Tudo se tornou automático, impessoal, digital. A civilização da velocidade feriu de morte o espaço simbólico da reconciliação. E o simples “foi sem querer” tornou-se peça de museu — um vestígio da linguagem de uma humanidade que sabia, ao menos, reconhecer a própria falha.

Talvez um dos maiores desafios contemporâneos não seja apenas resgatar essas expressões, mas restaurar o espírito que as sustentavam. Pedir desculpas exige coragem, respeito, sensibilidade e humildade — virtudes que a cultura da autopromoção e da performance rejeita sistematicamente. Reaprender a dizer tais expressões é, portanto, um ato de resistência e de humanidade. E, se um dia essas palavras voltarem a ressoar sinceramente nos ouvidos e nos corações, talvez isso signifique que a civilização reencontrou um de seus gestos mais nobres: a capacidade de se reconhecer no outro.

O conteúdo deste blog é livre e seus editores não têm ressalvas na reprodução do conteúdo em outros canais, desde que dados os devidos créditos.

mais / Postagens