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O desaparecimento silencioso das virtudes humanas

RUY PALHANO
Psiquiatra, membro da Academia Maranhense de Medicina e Doutor Honoris Causa – Ciências da Saúde – EBWU (Flórida EUA).

Há palavras que, durante séculos, sustentaram a civilização humana: honra, decência, piedade, gratidão, respeito, solidariedade, compaixão, ética, moral, amor, humanismo. Eram mais que vocábulos — eram faróis de sentido, coordenadas que orientavam a convivência social e o modo de ser do homem no mundo. Hoje, perderam o brilho, chega-se a ter certa vergonha em pronunciá-las. Tornaram-se, peças de museu do vocabulário moral, muito embora ainda carreguem um peso no processo civilizatório.

O filósofo francês Edgar Morin advertia que “o progresso técnico não pode ser considerado progresso humano” e que, ao se deslumbrar com a eficiência, a civilização moderna esqueceu-se da solidariedade, da fraternidade e da compaixão. Em nome da velocidade, do lucro e da competição, sacrificamos os valores que garantiam coesão e sentido à vida coletiva. A solidariedade, antes laço invisível que unia as pessoas em torno de causas comuns, foi substituída pela indiferença programada e pela lógica do “cada um por si”.

A moral e a ética, que um dia foram pilares da vida pública e privada, hoje se relativizam diante da conveniência. Tudo se tornou negociável e tem um preço— inclusive a consciência. Nietzsche, em Além do Bem e do Mal, já percebia esse fenômeno e o chamou de “transvaloração dos valores”: o processo pelo qual o homem moderno abandona os antigos ideais de bondade, fraternidade e verdade, substituindo-os por novos ídolos — poder, dinheiro e notoriedade. Vivemos, assim, uma época em que a moral deixou de ser bússola para tornar-se moeda.

A compaixão, virtude que Arthur Schopenhauer considerava “o fundamento da moralidade”, é agora vista como fraqueza pessoal. A empatia foi banalizada, o altruísmo perdeu espaço para o narcisismo, e o amor ao próximo se converteu em mera performance social nas redes. O sujeito contemporâneo vive cercado de conexões digitais, mas carece de vínculos reais. Vive exposto, mas é profundamente invisível. A dor do outro deixou de comover, porque a compaixão exige tempo, e o tempo tornou-se o bem mais escasso da contemporaneidade.

O humanismo, que floresceu no Renascimento como celebração da dignidade e da decência humana, encontra-se em ruínas. Giovanni Pico della Mirandola (1463–1494) filósofo e humanista italiano do Renascimento, considerado uma das figuras mais brilhantes e precoces de sua época, em seu Discurso sobre a Dignidade do Homem, afirmava que “nada é mais admirável do que o homem”, criatura capaz de moldar a si mesma.

O homem de hoje, porém, já não se reconhece como centro da criação, mas tampouco aprendeu a se integrar à totalidade da vida. Vive entre o delírio de onipotência — de quem acredita controlar tudo — e a mais absoluta solidão ontológica — de quem não sabe mais quem é. Como dizia Erich Fromm em O Medo à Liberdade, “o homem moderno transformou-se em coisa entre coisas”.

A ética, que antes orientava o comportamento pelo dever e pela responsabilidade, tornou-se um adereço discursivo, usada conforme o interesse. A sociedade digital é o palco da aparência ética — onde todos fingem virtude, mas poucos a praticam. Emmanuel Lévinas, em Totalidade e Infinito, lembrava que “a ética nasce do rosto do outro”, ou seja, da responsabilidade que sentimos diante da alteridade. No entanto, vivemos tempos em que o outro é percebido não como próximo, mas como obstáculo.

A moralidade, por sua vez, perdeu a base comunitária que a sustentava. Zygmunt Bauman, ao descrever a modernidade líquida, observou que “nada é feito para durar” e que os vínculos humanos se tornaram tão frágeis quanto as conexões de internet. Nessa fluidez, a fidelidade, a honestidade e o respeito se tornaram virtudes exóticas, quase subversivas. Numa era em que tudo é efêmero, inclusive os princípios, a integridade passa a ser um ato de resistência silenciosa.

Em vez de humanismo, proliferam discursos de auto engrandecimento. Em vez de compaixão, um pragmatismo frio. Em vez de solidariedade, uma indiferença anestésica. O “eu” hipertrofiado substituiu o “nós”. Byung-Chul Han, em A Sociedade do Cansaço, observa que o sujeito contemporâneo se tornou “um projeto de desempenho de si mesmo”, um ser esgotado e incapaz de doar-se, porque o outro desapareceu do horizonte da experiência. “O excesso de positividade”, diz ele, “aniquila o outro”.

Esse desaparecimento das virtudes não se dá de modo abrupto, mas silencioso. Elas se apagam não porque foram proibidas, mas porque deixaram de ser praticadas. O cotidiano frenético, o consumo incessante e a lógica da competição corroem as pequenas delicadezas que antes formavam o tecido ético da vida. Deixar o outro passar, escutar sem interesse, preocupar-se sem ganho — são gestos que perderam valor no mercado das relações. Emmanuel Mounier dizia que “a pessoa só existe através da generosidade”.

Paradoxalmente, quanto mais a sociedade se conecta, mais se isola. A tecnologia, que prometia unir, fragmenta. O tempo, que deveria libertar, escraviza. E os valores, que deveriam iluminar, se tornam sombras longínquas. Martin Heidegger advertia, em A Questão da Técnica, que o perigo maior não é a técnica em si, mas a perda do sentido do ser que ela provoca. O homem, reduzido a engrenagem, esquece-se de ser sujeito e se converte em instrumento.

Recolocar o ser humano no centro das decisões políticas, econômicas e culturais. Resgatar a pedagogia da empatia, a ética do cuidado, a estética da generosidade. Recuperar o sentimento de pertencimento à comunidade humana, lembrando, como afirmou Albert Camus, que “a verdadeira generosidade para com o futuro consiste em dar tudo ao presente”.

É necessário que voltemos a pronunciar — e viver — palavras como solidariedade, ética, compaixão e amor, solidariedade, compaixão. Não como slogans, mas como compromissos de existência. Pois, como dizia Albert Schweitzer, “a ética é a reverência pela vida”, e sem essa reverência, a civilização torna-se apenas uma maquinaria eficiente de desumanização.

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