O paradoxo do pertencimento e da inclusão

RUY PALHANO
Psiquiatra, Membro da Academia Maranhense de Medicina e Doutor Honoris Causa – Ciências da Saúde – EBWU (Flórida EUA).
Vivemos numa era em que se fala incessante e enfaticamente em inclusão, diversidade e pertencimento, é o que se ouve onde se vai. O vocabulário da aceitação tornou-se onipresente: campanhas publicitárias, escolas, grupos culturais organizados, empresas e governos evocam a ideia de uma convivência harmônica e plural. Contudo, como observou Zygmunt Bauman, vivemos tempos de “relações líquidas”, em que os vínculos se desfazem com a mesma facilidade com que se formam. Sob a superfície de um discurso de união, o que se vê é uma sociedade que fragmenta, separa, desagrega e dissolve. O pertencimento virou palavra de ordem — mas esvaziada de alma e de prática.
A contradição é gritante. Nunca se falou tanto em comunidade, e nunca estivemos tão sozinhos. Byung-Chul Han, em A Sociedade da Transparência, adverte que a modernidade digital substituiu o encontro pelo desempenho e o olhar pelo espelho. O “outro” deixou de ser presença para se tornar reflexo — ou ameaça. Nessa lógica, o pertencimento é impossível, pois ele requer alteridade, e o mundo contemporâneo aboliu o outro em nome de uma estética do eu. Vivemos cercados de discursos de inclusão, mas prisioneiros de sistemas que exaltam o isolamento produtivo e o narcisismo competitivo.
Pertencer, como apontava Émile Durkheim, é um fato social tão essencial quanto respirar. É da natureza humana integrar-se ao grupo, buscar no coletivo o amparo simbólico que legitima a existência. “O homem é um ser social por definição”, escreveu ele, e fora dessa sociabilidade o indivíduo adoece. Contudo, a sociedade atual parece esquecer essa verdade elementar. O sujeito contemporâneo é convidado a ser autossuficiente, empreendedor de si mesmo, proprietário da própria solidão. A autonomia, que deveria libertar, transformou-se em cárcere invisível.
Erich Fromm observou que o medo da solidão é uma das maiores angústias humanas e que, paradoxalmente, o homem moderno construiu um mundo que o condena justamente à solidão que teme. Em O Medo à Liberdade, Fromm diz que, ao se libertar dos laços tradicionais, o homem moderno se viu desamparado, inseguro e, por isso, buscou compensar o vazio pela submissão a sistemas anônimos. Hoje, esse sistema é a máquina social do desempenho e da aparência, que promete inclusão, mas exige uniformidade. O pertencimento se tornou condicionado à performance, e quem não performa é excluído com sorrisos e hashtags.
A inclusão contemporânea é seletiva e calculada. Inclui-se o que dá retorno, o que reforça a imagem, o que convém à estatística. Hannah Arendt, ao refletir sobre a condição humana, alertou que o perigo da modernidade é a transformação das relações humanas em relações funcionais. “O homem só é livre quando está entre outros homens”, escreveu ela, lembrando que o isolamento destrói o espaço público e, com ele, a própria noção de comunidade. O que temos hoje é uma sociedade que transforma o “estar com” em “estar útil a”, e o “pertencer a” em “servir para”.
O pertencimento é mais do que um vínculo institucional; é uma experiência existencial. Martin Buber, em Eu e Tu, nos ensina que a verdadeira relação só acontece quando o outro é reconhecido em sua totalidade, não como meio, mas como fim. O pertencimento nasce desse encontro autêntico entre sujeitos. No entanto, o mundo contemporâneo inverteu o sentido dessa relação: o outro é consumido como um objeto de validação, um espelho para o ego. Não há mais o “tu”, apenas um “isso” funcional e descartável. E, sem o “tu”, não há pertencimento possível.
O que se vê, portanto, é que a exclusão moderna não é mais física, mas simbólica. Ela não se expressa em muros ou leis, mas em olhares e silêncios. Bauman chamou isso de “solidão em meio à multidão” — uma solidão habitada, povoada de presenças superficiais, likes, curtidas e aplausos efêmeros. O sujeito moderno está rodeado, mas não acompanhado.
Byung-Chul Han, em outro ensaio, A Agonia do Eros, aponta que a era da transparência e da exposição contínua destruiu a distância necessária ao encontro humano. Tudo é visível, mas nada é partilhado; tudo é exposto, mas nada é profundamente revelado. O pertencimento requer mistério, tempo e presença — e são justamente esses elementos que a sociedade do espetáculo eliminou. Pertencer exige permanecer, e permanecer tornou-se uma heresia em tempos de velocidade.
A psicologia social e a psiquiatria já reconhecem o impacto dessa perda de pertencimento sobre a saúde mental. A exclusão — mesmo a simbólica — corrói a autoestima, desestrutura identidades e alimenta sentimentos de vazio e desamparo. Como afirmava Fromm, o homem moderno, “livre de amarras, mas sem direção”, sente-se como “uma folha arrancada de sua árvore”. O pertencimento é, pois, a raiz psíquica que o ancora ao sentido. Quando essa raiz se rompe, o homem flutua, sem solo nem destino.
Mas a exclusão não é apenas interpessoal; ela é estrutural. O sociólogo Pierre Bourdieu demonstrou como as estruturas sociais reproduzem a exclusão de forma invisível, naturalizando desigualdades sob o discurso da meritocracia. Assim, o pertencimento torna-se privilégio dos que dominam o capital simbólico — cultural, econômico ou estético. A inclusão, por sua vez, converte-se em espetáculo, em gesto de aparência, em simulação de justiça.
Diante disso, é preciso resgatar o sentido original do pertencimento: o de partilha. Durkheim lembrava que a coesão social não nasce da semelhança, mas da solidariedade. Buber reforçava que “toda vida verdadeira é encontro”. E Bauman insistia que, sem vínculos duradouros, a liberdade se dissolve em medo. Recuperar o pertencimento significa, portanto, reabilitar o laço humano como antídoto à indiferença — reabilitar o outro como espelho de nossa própria humanidade.
Kierkegaard, o filósofo da existência, dizia que “o desespero é a doença mortal” e que esse desespero nasce justamente da desconexão com o sentido. Pertencer é, nesse sentido, uma forma de cura: é reencontrar o outro e, com ele, reencontrar a si mesmo. A sociedade que exclui o sujeito adoece coletivamente; a que o integra, regenera-se. Pertencer é reconciliar-se com o mundo.
Como advertia Fromm, “a tarefa fundamental do homem na vida é dar à luz a si mesmo”. Mas esse nascimento só se completa no encontro com o outro, no reconhecimento mútuo, no laço que humaniza. A sociedade moderna — que tanto fala de inclusão — precisa compreender que a verdadeira inclusão é silenciosa, generosa e invisível. É o gesto de abrir espaço para o outro existir plenamente. Só então deixaremos de viver o paradoxo de um mundo que prega o pertencimento, mas pratica a exclusão.
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