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A saudade na perspectiva da modernidade

RUY PALHANO
Psiquiatra, Membro da Academia Maranhense de Medicina e Doutor Honoris Causa – Ciências da Saúde – EBWU (Flórida EUA).

A saudade é, antes de tudo, uma condição essencialmente humana. É um dos mais importantes e significativos dispositivos endógeno de neroadaptação, e não como muitos pensam apenas de um sentimento nostálgico ou melancólico ocasionado pela ausência de algo ou alguém. Este dispositivo nos auxilia a lidar com a separação — seja pela morte, pela distância, ou pelas rupturas afetivas que marcam a experiência humana.

A saudade, como um sentimento é imprescindível à nossa condição de seres humanos, é como um elo vivido de forma consistente e invisível entre o passado e o presente, conferindo a nossa existencialidade continuidade emocional e afetiva àquilo que nos foi caro, significativo e importante e que ainda amamos, mesmo na ausência.

Do ponto de vista antropológico, a saudade revela nossa significância e nossa incompletude. Somos seres lançados no tempo, como bem nos ensinou Heidegger, “e a consciência dessa transitoriedade faz emergir a saudade como forma de reter, simbolicamente, aquilo que escapa pela lógica inexorável do tempo”.

Nesse sentido, ela não é um sentimento de fraqueza ou fragilidade, mas um sentimento potente e vigoroso da alma: ela nos permite lembrar com afeto, reconstituir com ternura e, sobretudo, manter vivos dentro de nós aqueles que partiram deixando um vazio profundo nos momentos que já não voltam mais.

Lamentavelmente, percebe-se, que a modernidade vem progressivamente esvaziando esse dispositivo existencial. O modo como os vínculos humanos estão se estabelecendo na contemporaneidade — marcados pela instantaneidade, pela efemeridade e pela superficialidade — tem contribuído para a rarefação da experiência da saudade.

Em sociedades líquidas, como descreveu Zygmunt Bauman, os relacionamentos escorrem pelas mãos. Não há tempo para o enraizamento, para a aproximação, para a permanência e para o cultivo do afeto profundo. E onde não há profundidade, não pode haver saudade. Há, no máximo, uma lembrança nostálgica, apressada, descartável, e muitas vezes artificial que rapidamente se escai.

A saudade genuína, por outro lado, é fruto da profundeza e da densidade das relações humanas. Ela brota do envolvimento, do apego significativo, da presença intensa que, uma vez interrompida, deixa marcas profundas e duradouras. O filósofo brasileiro Rubem Alves dizia que a saudade é a nossa alma dizendo para onde ela quer voltar”.

Trata-se, pois, de um movimento de retorno simbólico ao que passou, uma tentativa de reconciliação com aquilo que nos fundou afetivamente. Perder a capacidade de sentir saudade é perder parte do que nos constitui como sujeitos capazes de amar, sofrer, recordar e elaborar perdas.

A psicanálise também oferece uma leitura importante desse fenômeno. Freud, ao discutir o luto, já apontava que a elaboração da perda envolve um trabalho psíquico de rememoração, identificação e deslocamento. A saudade, nesse processo, atua como caminho para a sublimação: ela permite dá um outro significado a ausência, transformando-a em memória viva, em herança afetiva.

Na atualidade, observa-se um empobrecimento progressivo e lamentável do repertório emocional das pessoas: estão se tornando frias, indiferentes e insensíveis aos outros. As redes sociais e os vínculos digitais substituíram, em muitos aspectos, a presença material, o toque, o sentir, o ouvir e o tempo partilhado. A saudade foi trocada por “likes”, notificações e por recordações agendadas nos algoritmos de memórias artificiais.

O problema disso é que os afetos e os sentimentos se tornam simulacros, como advertiu Jean Baudrillard, e a dor da separação já não encontra espaço legítimo para se expressar — ela é silenciada pela lógica da rapidez, da produtividade, da positividade compulsória, da efemeridade e da competitividade voraz.

Superar essa lógica exige recuperar a saudade como gesto de saúde psíquica. Trata-se de legitimar a dor da ausência, de revalorizar o tempo da memória, de permitir-se sentir e elaborar as perdas com profundidade. A saudade, quando acolhida e compreendida, não paralisa: ela transforma e nos guarda. Ela nos reconecta com nossas raízes, com nossa história que nos moldou, com os vínculos que nos deram sentido. Como afirmou Fernando Pessoa, “há um passado em cada saudade”, e honrar esse passado é também um modo de afirmar o presente”.

Portanto, é urgente que, em meio ao turbilhão das relações aceleradas e do culto ao descartável e a promoção do imediatismo, possamos reencontrar o valor humano das boas lembranças e da necessária saudade. Ela é uma ponte afetiva entre o que fomos e o que somos, entre os que partiram e os que permanecem em nós.

A saudade nos humaniza, nos lembra que amar deixa marcas profundas, e que lembrar é uma forma de continuar vivendo com os outros que foram ou partiram para longe. Em tempos de relações fugazes, fugidias e efêmeras, recuperar a saudade como virtude é talvez um dos maiores atos de resistência emocional e existencial que podemos realizar.

Compreender a saudade como virtude é, portanto, um convite à reconexão com aquilo que dá densidade à vida. Ao contrário do que prega a lógica contemporânea do desapego imediato, cultivar a saudade é afirmar que os vínculos importam, que a presença do outro deixa rastros em nós que não devem ser apagados. Sentir saudade não exige substituição, mas elaboração profunda; ela não pede pressa, mas escuta. Ela nos ensina que o amor não se desfaz com a ausência, mas se reinventa na memória, no símbolo, no gesto silencioso de continuar amando apesar da falta.

Por isso, mais do que um sentimento melancólico ou nostálgico, a saudade é um testemunho: de que vivemos intensamente, que nos vinculamos de verdade com os outros; que fomos tocados por experiências que merecem ser lembradas; que amamos e fomos amados. Em uma época marcada pela volatilidade dos afetos e pelo esquecimento programado, pela rapidez das relações que não nos permiti sentir saudade, lutemos por ela.

Portanto, sentir saudade é, em última instância, afirmar a permanência do humano dentro de nós. E talvez seja esse o maior desafio do nosso tempo: não apenas sobreviver às perdas, mas permanecer sensíveis a elas, permitindo que a saudade continue a ser aquilo que sempre foi — um sussurro da alma pedindo para não a esquecermos.

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