Recortes da realidade

JOSÉ LUIZ OLIVEIRA DE ALMEIDA
Corregedor-geral da Justiça
E-mail: [email protected]
No começo do ano de 2023 foi instalada, na Câmara dos Deputados, a CPI do MST, Movimento dos Sem-Terra. Do coligido na referida CPI, coloco em realce o diálogo havido entre o professor José Geraldo de Sousa Júnior, doutor em Direito da Universidade Nacional de Brasília, e a deputada Caroline de Toni (PL-SC).
Deputada da Caroline de Toni (PL-SC):
“[…] E é isso que a gente quer: transparência, legalidade, impessoalidade, gestão pública eficiente. Por isso que a gente está nessa CPI para desmascarar os crimes e para chegar, não só à verdade dos fatos, mas também, aqui, realmente, se é para dar terras para as pessoas, que elas mereçam efetivamente.
José Geraldo de Sousa Júnior, em resposta:
“[…] Eu só queria dizer assim. Otávio Paz, no Labirinto da Solidão, diz que os indígenas, quando Colombo chegou, não viram as caravelas, não viram que elas estavam ali fundiadas […], não havia cognição para poder representar cerebralmente uma imagem que era absolutamente incompatível com o quadro mental de uma cultura que não tinha elementos para visualizar. Eu não tenho como discutir com a deputada porque a sua visão de mundo, da sua percepção como cosmovisão só lhe permite enxergar o que a senhora já tem inscrito na sua cognição. Então, a senhora vai ver não é o que existe, mas é o que a senhora recorta da realidade. A realidade é recortada por um processo cognitivo de historialização. Então eu não posso discutir um tema que contrapõe visão de mundo, concepção de mundo […]”
Deputada Caroline de Toni, em seguida:
“[…] Ele me ofendeu. Com todo o respeito. Tentou vir com categoria acadêmica debochar da nossa cara. […]”.
Não, Deputada, não houve ofensa. É apenas a constatação de uma realidade indiscutível, cada dia mais presente em nossas vidas. As pessoas só veem mesmo o que desejam ver, ou seja, apenas os recortes que fazem da realidade.
Nos dias presentes, as pessoas têm uma maneira particular de ver o mundo, uma cosmovisão obliterada pelo sectarismo, pelo fanatismo, pelo engajamento, de modo que só têm olhos para o que lhes importam.
É dizer: cada dia mais o ser humano só reage em face do que já está inscrito na sua cognição, daí que até conceitos que antes eram indiscutíveis – como ditadura, democracia, legalidade, arbitrariedade e liberdade, por exemplo -, hoje são relativizados, a depender, sempre, da visão de mundo de cada uma, ou seja, em vista daquilo que veem, visão que macula, na origem, o processo de cognição.
À guisa de exemplo, lembremo-nos do que ocorre com a ação penal n. 2668, na qual estão sendo julgados os protagonistas de uma tentativa de golpe, segundo o Procurador-Geral da República, secundado pela 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal.
Pois bem. Para determinada parcela da população, não há dúvidas de que a imputação procede e, por isso, devem ser punidos os autores dos crimes. Para outra parcela, com as mesmas informações, em face dos mesmos fatos e mesmas tipificações, tudo não passaria de perseguição política, a reafirmar que cada um vê o que quer, a reafirmar, no mesmo passo, a seletividade da cognição a que me reportei acima.
Como pontuou o ilustre professor, gostemos ou não da sua fala, as pessoas só conseguem perceber aquilo que está escrito em sua cognição, simplesmente porque não desejam, se recusam a ver a realidade, por mais cristalina que ela possa parecer.
Algumas vezes, até tentamos fazer as pessoas enxergarem a realidade. Essa luta, no entanto, para quem não quer vê-la, resulta embalde, daí que é preciso admitir, perdemos tempo nas tentativas de demover, por exemplo, um fanático político de suas “convicções”, em face do que já está sedimentado em sua cognição, fruto dos recortes que faz da realidade.
É isso.
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