Entre a liberdade individual e o colapso das referências coletivas

RUY PALHANO
Psiquiatra, Membro da Academia Maranhense de Medicina e Doutor Honoris Causa – Ciências da Saúde – EBWU (Flórida EUA).
O que presenciamos na sociedade contemporânea é uma sucessão vertiginosa de comportamentos que, embora possam parecer extravagantes ou isolados, revelam um padrão profundamente distinto da cultura predominante e, além disso, inquietante: a dissolução progressiva de referências coletivas, substituídas por um mosaico de escolhas individuais, muitas vezes efêmeras e autossuficientes.
O uso de chupetas por adultos como suposta terapia contra depressão e ansiedade, a dispensa deliberada de roupas íntimas como gesto de “libertação” corporal, a transformação de bonecas hiper-realistas em parceiras afetivas e sexuais — gerando inclusive casamentos —, a humanização extrema de pets — com vestes e festas de aniversário, guarda compartilhada e até heranças testamentárias — são apenas faces visíveis de um fenômeno mais amplo.
O uso de chupetas por adultos, fenômeno que recentemente vem ganhando visibilidade em redes sociais e até em certos nichos terapêuticos, é um exemplo claro de como objetos originalmente associados à infância estão sendo ressignificados na cultura contemporânea. Em alguns casos, o ato é apresentado como um recurso para lidar com ansiedade, estresse ou insônia, explorando a associação entre sucção e sensação de conforto — algo já documentado na psicologia do desenvolvimento infantil.
Do ponto de vista psicossocial, essa prática também dialoga com a “cultura do alívio imediato”. Assim como no caso de brinquedos colecionáveis, pets humanizados ou casamentos consigo mesmo, há aqui um elemento de refúgio emocional em símbolos e objetos, que funcionam como amortecedores temporários, mas que não necessariamente contribuem para um amadurecimento ou para o fortalecimento da autonomia psíquica.
Esses fenômenos são impulsionados por três forças simultâneas: a liquidez das normas (como descreveu Bauman), a hipervalorização da experiência subjetiva e a midiatização instantânea de qualquer comportamento. Em um cenário no qual o “eu” é a autoridade máxima, cada ato, por mais excêntrico que pareça, encontra espaço e audiência para ser legitimado. A internet atua como um acelerador cultural: práticas antes restritas a nichos rapidamente se espalham, tornam-se tendência e, em alguns casos, chegam a ser defendidas como direitos inalienáveis.
O campo dos relacionamentos é talvez o mais ilustrativo dessa mudança. Vemos uniões múltiplas — trissais, quartetos e até quintetos conjugais — que rompem com o modelo de monogamia historicamente consolidado. Ao mesmo tempo, há cerimônias de casamento consigo mesmo, tratadas como atos de “amor-próprio”, e vínculos afetivos com entidades não humanas, sejam elas bonecas, inteligências artificiais ou animais de estimação.
Nesse contexto, a sologamia é um reflexo emblemático da valorização extrema da autonomia e da autoafirmação na sociedade contemporânea. Nela, a pessoa realiza um ritual formal, muitas vezes com trajes, votos e convidados, celebrando simbolicamente o compromisso com a própria felicidade, independência e amor-próprio.
Embora seja apresentada por alguns como um gesto de empoderamento e ruptura com a dependência afetiva tradicional, também suscita críticas por reforçar a lógica individualista e narcisista que marca o nosso tempo, transformando o matrimônio — historicamente ligado ao encontro e à construção de um projeto compartilhado — em um ato de autocentramento.
Tal prática, quando descontextualizada de um processo real de autoconhecimento, corre o risco de se tornar mais um espetáculo para consumo nas redes sociais do que uma experiência transformadora, ilustrando a forma como certos rituais antigos são ressignificados e, por vezes, esvaziados de seu sentido comunitário. Observa-se que tudo isso não se trata apenas de diversidade de arranjos, mas de uma redefinição radical do que significa amar, comprometer-se e construir um laço duradouro.
No ambiente de trabalho, a lógica do inusitado também avança. Há empresas que incentivam funcionários a trabalharem fantasiados, oferecem salas de “choro terapêutico” e até espaços de “imersão sensorial” para relaxamento durante o expediente. Não é que o cuidado emocional seja dispensável; o problema está em confundir paliativos superficiais com intervenções profundas.
Criar um espaço de descompressão pode ser útil, mas, sem enfrentar as causas estruturais do estresse, esses recursos funcionam como a chupeta para o adulto ansioso: um alívio temporário que não transforma a raiz do problema.
A tendência de externalizar a responsabilidade sobre esses novos tipos de comportamento tornou-se um denominador comum. Assim como não é a maconha ou a cocaína que, por si só, destroem vidas — e sim o uso abusivo e descontextualizado, somado a fatores individuais, sociais e psicopatológicos —, também não são as redes sociais, a moda ou as terapias alternativas que “causam” decadência social.
Estamos diante de uma cultura que privilegia o alívio imediato do mal-estar, da dor e das angústias em detrimento das transformações profundas esperadas. Em vez de encarar os dilemas existenciais, emocionais ou relacionais com paciência, disciplina e introspecção, buscamos atalhos simbólicos ou objetos de substituição. Isso explica por que tantos fenômenos emergem simultaneamente: a sociedade da pressa, aliada à sociedade do espetáculo, cria um ambiente fértil para soluções estéticas, rápidas e de forte apelo visual — ainda que frágeis e insustentáveis.
A grande questão, portanto, não é apenas registrar o inventário das excentricidades modernas, mas perguntar: o que estamos perdendo ao abdicar de referências comuns e de processos mais lentos e consistentes de construção da vida? A erosão de estruturas compartilhadas pode ser vista como libertação de velhas amarras, mas também pode representar o enfraquecimento dos vínculos e a incapacidade de sustentar compromissos de longo prazo. O risco é entrarmos numa era de hiperliberdade aparente, mas de solidão e fragilidade internas crescentes e profundas.
A história mostra que sociedades que se distanciam excessivamente de pontos de coesão tendem a experimentar crises não apenas morais, mas também de sobrevivência estrutural. O que estamos vivendo pode ser um prenúncio de um novo modelo social mais plural ou um prenúncio de um colapso psicossociocultural silencioso — e talvez irreversível — das bases que sustentam a vida em comum. A resposta dependerá menos das modas e mais da nossa capacidade de olhar para dentro, assumir responsabilidades e reencontrar um sentido compartilhado de existência.
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