Da tela ao tambor: A diáspora do Daomé na ficção, no samba e na história real

CARLOS AUGUSTO FURTADO*
Como historiador, sou fascinado por filmes baseados em fatos reais, e foi por isso que, no feriadão da Pátria, procurei na plataforma de streaming Netflix. Encontrei “A Mulher Rei”, cujo trailer logo me chamou a atenção, já que se tratava de uma trama no reino de Daomé. Comecei a assisti-lo e, à medida que a trama se desenvolveu, veio-me a lembrança do samba-enredo “De Daomé à Casa das Minas”, da Escola de Samba Flor do Samba de São Luís – Maranhão do início da década de 80.
Ao analisar a obra junto ao samba, percebe-se um panorama complexo de como a mesma história pode ser narrada, misturando licença poética, arte popular e a dura realidade.
A idealização de Hollywood: o discurso de luta e empoderamento
O épico “A Mulher Rei” é uma obra poderosa de entretenimento, que narra a jornada da general Nanisca e da recruta Nawi. O enredo é construído sobre a premissa de que as guerreiras se opunham ao lucrativo comércio de escravos, lutando pela liberdade e pela dignidade de seu povo contra os europeus. O filme cria uma narrativa de heroísmo com a qual o público contemporâneo pode se identificar.
Contudo, essa idealização simplifica a história. O Reino do Daomé era uma nação-guerreira cuja prosperidade e poder eram intrinsecamente ligados ao tráfico de pessoas. As próprias Agojie, apesar de sua bravura, eram a força militar usada para capturar escravos e vendê-los. O filme, portanto, adapta a história para contar uma saga de redenção, transformando uma parte crucial do tráfico negreiro em uma história de resistência, o que serve ao propósito do entretenimento, mas simplifica a complexidade histórica.
A memória viva no samba maranhense
Em contraste, o samba-enredo da Flor do Samba não busca a idealização, mas a preservação da memória e da ancestralidade. Vencedor do carnaval de 1980 e reeditado em 2006, ele é o resultado de uma profunda pesquisa de campo, fruto do trabalho dos compositores Beto Pereira e Augusto Tampinha.
Eles mergulharam nas tradições de São Luís e descobriram que uma parcela significativa de escravizados na região vinha do Daomé. Diferentemente de outros grupos, esses Fons mantiveram suas tradições religiosas, preservando rituais e divindades.
A fundação da Flor do Samba, em 1938, por um grupo de engraxates, pescadores e estivadores na Rua da Estrela, já demonstra a origem popular e a força da cultura negra em São Luís. A escola de samba, portanto, é mais que uma agremiação carnavalesca; ela é uma guardiã da memória. O samba é uma crônica poética que liga o mito de fundação do Daomé à criação da Casa das Minas, um dos terreiros mais antigos do Brasil, fundado pela princesa e nobre do Daomé, Maria Jesuína. A letra homenageia figuras históricas como Catarina Mina e Mãe Andressa, que asseguraram a continuidade da cultura Fon em solo brasileiro.
A Flor do Samba utilizou o carnaval como uma plataforma para educar, valorizar a ancestralidade e mostrar que a história do Maranhão não é apenas sobre a colonização, mas sobre a resistência africana.
Conclusão
Essas duas obras, a ficção da tela e a música do samba, mostram a rica tapeçaria da história. “A Mulher Rei” apresenta uma versão heroica e globalizada do Daomé que pode despertar o interesse do público para a história africana. O samba-enredo, por sua vez, oferece uma narrativa mais autêntica, enraizada na memória de um povo que lutou para manter sua cultura viva no Brasil. Juntos, eles nos lembram que a história pode ser contada de muitas maneiras — seja em uma tela de cinema ou ao som de um atabaque.
A herança do reinado de Daomé, com suas guerreiras e sua religiosidade, continua a inspirar e a moldar a identidade de um povo, mesmo em terras distantes, provando que a arte pode ser uma poderosa guardiã da história.
*Historiador, coronel veterano da Polícia Militar do Maranhão, titular da cadeira nº 01, da Academia Maranhense de Ciências, Letras e Artes Militares (Amclam).
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