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A discrepância entre pensar e agir

RUY PALHANO
Psiquiatra, Membro da Academia Maranhense de Medicina e Doutor Honoris Causa – Ciências da Saúde – EBWU (Flórida EUA).

Entre as muitas contradições humanas, uma das mais abomináveis é a discrepância entre o que se diz e o que se faz. Isto é, uma pessoa dizer uma coisa e fazer outra, às vezes, completamente diferente daquilo que dissera. Essa fissura entre a palavra e a ação acompanha a humanidade como um traço universal, mas não menos repugnante. Dizer uma coisa e agir em sentido contrário não é apenas um erro moral ou uma falha de caráter, é a negação da própria essência da palavra, da honradez e do compromisso os quais deveriam ser um pacto de coerência entre intenção, compromisso e prática.

Do ponto de vista existencial, essa incongruência fere o núcleo mais íntimo da confiança, qual seja, a palavra. Ela é um dos fundamentos humanos mais importantes da vida expressa em sociedade: é por meio dela que prometemos, que estabelecemos vínculos, que damos garantias e que firmamos compromissos. Quando a palavra se divorcia da ação, cria-se o espaço da mentira, da manipulação, da descrença e de falsidade.

A palavra deixa de ser promessa e torna-se engodo, instrumento de poder, meio de manipulação, ou instrumento de dominação. Essa fratura produz um efeito corrosivo gigantesco na vida coletiva: ninguém mais acredita em ninguém, e a suspeita passa a ser o elo predominante nas relações humanas. Se isto se dá nas diferentes instancias do poder, isto corrói a crença e a fé no homem público

Se essa prática já é danosa no âmbito individual, quando transportada para o campo da política e da gestão pública, como vimos acima, este fato adquire contornos devastadores. O povo confia no que é dito por seus representantes, esperando que o discurso corresponda ao gesto. No entanto, a cena política é talvez o palco mais escancarado dessa contradição: presidentes, governadores, prefeitos e parlamentares são mestres em anunciar promessas, planos e compromissos que se dissolvem no ar diante da prática concreta.

O governante que fala em austeridade enquanto ostenta privilégios; o parlamentar que proclama ética enquanto negocia benefícios próprios; o presidente que defende o povo em discurso, mas governa em favor de grupos restritos. O ministro que prega transparência, mas atua nos bastidores em conchavos obscuros.  O parlamentar que defende saúde pública de qualidade, mas busca tratamento particular em hospitais de luxo no exterior. O juiz que exalta a imparcialidade da justiça, mas decide conforme conveniências políticas. O secretário que anuncia combate à corrupção, mas mantém parentes e aliados em cargos de confiança sem qualificação.

De tanto ver florescer essas contradições no cenário da vida moderna, sobretudo em países como o nosso, passou-se a transformar essa incongruência em ferramenta de poder. A discrepância entre o que se diz e o que se faz deixou de ser um desvio moral acidental para se tornar um dispositivo calculado de manipulação política. Além do mais, tais incongruências já fazem parte dos discursos corriqueiros dos que governam e exercem atividades em diferentes instâncias do poder, gerando uma descrença geral e coletiva.

Estes atores, perceberam que podem sobreviver nesse jogo de contradições porque o povo, descrente e cansado, já não distingue com clareza entre discurso e realidade. Essa manipulação habilidosa das palavras gera, como dissemos acima, uma espécie de anestesia coletiva, onde promessas vazias se sucedem em ciclos e a ausência de cumprimento torna-se regra tolerada.

E é exatamente nesse ponto que se abre o risco maior: a contradição sistemática entre discurso e prática pode ser o prenúncio do autoritarismo. Quando a palavra perde valor e a confiança se dissolve, instala-se um terreno fértil para o desmando. Governantes autoritários encontram nesse vazio moral a oportunidade para impor sua vontade sem prestar contas, porque já não existe a expectativa de coerência entre o que dizem e o que fazem.

A incoerência entre fala e ação, longe de ser apenas uma hipocrisia, converte-se em estratégia de poder e de domínio: governa-se pelo engano, administra-se pela contradição, perpetua-se o poder pela mentira. Esse processo conduz a um cenário perigoso: a democracia, esvaziada de sua substância ética, moral e de coerência vira um teatro de encenações; as instituições, frágeis, tornam-se cúmplices involuntárias desse jogo; e a população, descrente, sucumbe ao cinismo e à indiferença.

A discrepância entre palavra e gesto deixa, então, de ser uma falha individual e passa a ser mecanismo de mando e de governo. Assim, pavimenta-se o caminho para o autoritarismo, pois a ausência de coerência dissolve o pacto social e abre espaço para o “vale-tudo” político, onde o poder não se fundamenta na legitimidade, mas na manipulação.

Essa idiossincrasia entre o dizer e o agir, portanto, não pode ser tratada como uma simples fraqueza humana. É um vício estrutural que ameaça a vida coletiva, destrói a confiança no Estado e fragiliza a democracia e de todos os outros pressupostos necessários às garantias do tecido social e político.

A política, em vez de ser espaço da verdade pública, transforma-se em espetáculo de contradições, onde a fala é só retórica e a ação é privilégio particular. O resultado é um povo cada vez mais afastado da realidade e participação subtraída do cenário político, portanto, um Estado cada vez mais distante de sua função social precípua, e um sistema político cada vez mais tentado ao autoritarismo.

Resta, como contraponto, a exigência da coerência. Do ponto de vista humano, cabe a cada indivíduo alinhar seu falar ao seu agir, buscando na palavra um compromisso com a verdade e com a ética. Do ponto de vista humano, cabe a cada indivíduo alinhar seu falar ao seu agir, buscando na palavra um compromisso com a verdade e com a ética.

Do ponto de vista coletivo, cabe à sociedade vigiar, fiscalizar e cobrar e não se deixar seduzir por discursos vazios e mentirosos. Somente assim se pode impedir que a palavra continue sendo usada como máscara para o desmando. Mais do que nunca, é preciso desconfiar das retóricas fáceis, das promessas mágicas infundadas e das falas que soam bem, mas não resistem ao confronto com a realidade. O povo não pode se deixar guiar pela demagogia, pois ela alimenta o ciclo da mentira e perpetua o domínio dos incoerentes.

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