O paradoxo existencial: viver e decidir morrer

RUY PALHANO
Psiquiatra, Membro da Academia Maranhense de Medicina e Doutor Honoris Causa – Ciências da Saúde – EBWU (Flórida EUA).
A história da humanidade é a história da luta pela vida. Desde o nascimento até a morte natural, tudo o que fazemos, em todos os sentidos é proteger e dá sentido à vida– em nossa biologia, em nossas construções sociais e em nossa espiritualidade – é voltado para proteger a existência, prolongá-la, reproduzi-la e reinventá-la.
A vida se impõe como instinto, como impulso e como valor universal inestimável. Contudo, diante dessa força vital surpreendente, emerge um paradoxo profundo: há pessoas que decidem encerrar voluntariamente a própria vida. O suicídio, nesse sentido, representa uma ruptura dolorosa, profunda e enigmática com o mais primitivo e essencial dos instintos humanos, qual seja o de proteger e manter a própria existência.
Compreender este fenômeno exige ultrapassar a superfície e explorar as condições que o tornam possível. A primeira dessas condições é a dor psíquica insuportável, conceito trabalhado por Edwin Shneidman ao cunhar o termo psychache. Não se trata apenas de tristeza ou desânimo, desinteresse ou apatia, mas de um sofrimento mental intolerável, insuportável e indescritível, que invade todas as nossas entranhas e os espaços da subjetividade e faz com que a morte seja percebida não como fim em si mesma, mas como a única via de cessação da dor.
Nesse ponto, o indivíduo não deseja propriamente deixar de existir, mas sim escapar daquilo que já não consegue suportar. A segunda condição, e talvez a mais decisiva do ponto de vista médico, estatístico e comportamental, é a doença mental. Estudos de organismos como a Organização Mundial da Saúde (OMS), a Associação Psiquiátrica Americana (APA) e o Conselho Federal de Medicina (CFM) são convergentes: estima-se que mais de 90% dos casos de suicídio estão relacionados a algum transtorno psiquiátrico diagnosticável.
Entre estas enfermidades, destacasse depressão grave, transtorno bipolar, esquizofrenia, transtornos de personalidade (especialmente o borderline) e dependência química, entre estas a dependência de álcool, tabaco e outras drogas, notadamente o uso abusivo de álcool, são os principais fatores que atravessam a trajetória de quem atenta contra a própria vida.
Essas doenças não apenas fragilizam a percepção de esperança, a autoestima e rupturas com família, trabalho, relações sociais e laborais, mas também alteram o juízo crítico da realidade, levando tais pessoas a avaliarem equivocamente ou de forma patológica sua situação existencial, intensificam impulsos autodestrutivos e corroem o vínculo do sujeito com a realidade e com os outros. Nestas condições, portanto, o suicídio, deve ser compreendido como um desfecho de quadros psiquiátricos não tratados ou malconduzidos, o que reforça a urgência na implantação de políticas públicas de saúde mental consistentes e efetivas de prevenção.
A terceira condição é a desesperança existencial, aquilo que Viktor Frankl descreveu como a perda de sentido da vida. Quando um indivíduo não encontra razões para continuar, quando as perguntas do “porquê” já não têm resposta, o peso da existência torna-se insuportável. A ausência de propósito, de horizonte ou de significado lança a pessoa em um vazio profundo que abre espaço para a ideia da morte como solução. Esse aspecto existencial se entrelaça com os transtornos mentais, agravando a percepção de inutilidade e desamparo.
A quarta condição encontra-se no terreno das adversidades sociais. Pobreza extrema, desemprego crônico, discriminação, violência disseminada e de todos os tipos que circulam entre as pessoas, marginalização e exclusão social são elementos que corroem lentamente a dignidade humana e que colaboram para pensamentos suicidas.
Nestas condições insuportáveis o indivíduo que não encontra suporte material, nem espaço de pertencimento psicossocial, vê-se cada vez mais vulnerável. O suicídio, nesse caso, não pode ser lido apenas como drama individual ou existencial, mas também como denúncia silenciosa das falhas estruturais da sociedade.
Por fim, a quinta condição a ser destacada é o colapso dos vínculos afetivos. O ser humano é um ser gregário, relacional por excelência. Todos nós precisamos de laços, de vínculos, de reconhecimento, de pertencimento. Precisamos principalmente de gente.
Quando esses vínculos se rompem ou não se estabelecem, instala-se interiormente a cada um de nós um sentimento profundo e radical de a solidão: a de não ser visto, ouvido, considerado ou querido por ninguém. A ausência de laços afetivos pode intensificar a sensação de abandono e de vazio, tornando o suicídio uma saída desesperada diante do isolamento.
Essas cinco dimensões – a dor psíquica, a doença mental, a desesperança, a adversidade social e a falência dos vínculos – não se excluem, mas se entrelaçam, se justapõem, criando um emaranhado insuportável de vivências humanas. No entanto, é inegável que a doença mental, neste conjunto de situações, ocupa lugar central e de destaque na explicação desse paradoxo humano. O suicídio, como pensam, não é um gesto de liberdade plena ou uma escolha racional em estado de equilíbrio ou mesmo um exercício de livre arbítrio sobre a morte; é, sim, na maioria dos casos, um ato condicionado por transtornos psiquiátricos severíssimos, entremeados por outros fatores que distorcem a percepção de si e do mundo, os quais deverão ser, emergencialmente, tratados.
Por isso, compreender o suicídio como fenômeno multifatorial é essencial, mas reconhecê-lo como um problema de saúde pública é ainda mais urgente. Não basta só oferecer tratamento médico, psicológico ou simplesmente um telefone que ajude alguém a pensar, é sim a oportunidade de se construir políticas consistentes, abrangentes e referenciadas que assegurem acesso universal à saúde mental, combatam o estigma, fortaleçam vínculos comunitários e promovam uma cultura de sentido e esperança e de proteção essencial da vida.
Somente assim será possível enfrentar o paradoxo da morte voluntária em meio à pulsão pela vida, devolvendo ao ser humano a possibilidade de encontrar no viver, e não no morrer, a resposta para sua dor. Compreender o suicídio como fenômeno multifatorial é reconhecer a complexidade de suas raízes — biológicas, psicológicas, sociais e existenciais.
No entanto, tratá-lo apenas como questão individual é insuficiente. Ao ser tratado como questão de saúde pública, o suicídio convoca governos, instituições e a sociedade a agir coletivamente, através de políticas consistentes de prevenção, de acesso ao cuidado e de combate ao estigma.
É nesse sentido que o Setembro Amarelo, instituído pela OMS em 1994 e aqui no Brasil pela Associação Brasileira de Psiquiatria – ABP e Conselho Federal de Medicina – CFM (2014) não é, tão somente, só um mês de conscientização, é uma oportunidade importante para transformarmos a dor invisível em pauta social relevante, enfatizando que salvar vidas depende tanto de escuta e acolhimento humanizados quanto de ações efetivas estruturadas e permanentes originárias do Estado e de todos.
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