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Justiça, condição vital na promoção da saúde mental

RUY PALHANO
Psiquiatra, Membro da Academia Maranhense de Medicina e Doutor Honoris Causa – Ciências da Saúde – EBWU (Flórida EUA).

A saúde mental é um dos fundamentos imprescindíveis na formação de um povo de uma sociedade e de uma pessoa. Ela não se constrói apenas nos consultórios, nas terapias, nos medicamentos ou nos centros especializados. Ela começa, de forma mais ampla e profunda, na organização ética, jurídica e política da sociedade e seus primeiros alicerces são edificados dentro de nossas casas.

Uma nação justa, que assegura direitos, oportunidades equitativas e proteção aos seus cidadãos, oferece um solo fértil para a saúde psíquica florescer. A justiça, nesse sentido, não é apenas um pilar abstrato do Estado de Direito, mas um componente essencial da saúde coletiva.

Quando a justiça se manifesta de modo pleno, sem retoques — por meio da equidade de acesso aos bens sociais, da proteção jurídica imparcial, do combate efetivo às desigualdades e da presença de instituições que respeitam a dignidade humana —, ela gera um ambiente simbólico de segurança, pertencimento e confiança. Esses três elementos são fundamentais para a promoção e consolidação saúde mental. A justiça, ampla, geral e irrestrita reduz os medos, a angústia e fortalece os vínculos sociais.

Pesquisas internacionais evidenciam que sociedades com menor desigualdade, justiça distributiva mais eficaz e mecanismos reais de reparação possuem índices mais baixos de depressão, ansiedade, ideação suicida e violência. Há uma correlação direta entre o senso de justiça percebido pela população e indicadores de bem-estar subjetivo. Não se trata apenas de direitos civis garantidos na letra da lei, mas de justiça vivida no cotidiano, na prática institucional, na convivência pública e privada.

Por outro lado, uma sociedade marcada pela injustiça estrutural — onde imperam a desigualdade, a corrupção, o racismo institucional, a impunidade e a exclusão — tende a adoecer psíquica e moralmente população ode esta prática está inserida. A injustiça, sobretudo quando reiterada e naturalizada, gera estados mentais crônicos de impotência, ressentimento, desesperança e indignação e outras experiências humanas de dor e sofrimento. A injustiça corrói a autoestima coletiva e instala um estado de sofrimento moral silencioso e difuso.

Povos submetidos a regimes autoritários, a legislações injustas ou a sistemas que não protegem os mais vulneráveis tendem a desenvolver, em larga escala, sintomas de trauma coletivo, baixa coesão social e mecanismos de defesa psíquica como a apatia, o cinismo e a alienação. Em um ambiente assim, o sofrimento das pessoas se torna parte do tecido cultural, e a patologia se normaliza — seja em forma de adoecimentos individuais (transtornos depressivos, ansiosos, dependência de substâncias, suicídios).

Além disso, a injustiça reiterada desumaniza. Torna o sujeito um número, um corpo descartável, um caso arquivado. E onde não há reconhecimento da dignidade do outro, não pode haver saúde psíquica verdadeira. A justiça, nesse aspecto, é o princípio organizador do humano: ela devolve ao sujeito sua condição de pertencente, de digno de cuidado, de merecedor de respeito e de sua autonomia.

As injustiças impactam diretamente os núcleos psíquicos mais profundos do sujeito, ferindo sua estrutura de identidade e gerando uma vivência de exclusão emocional e simbólica. A pessoa que se percebe injustiçada, preterida ou constantemente violada em seus direitos tende a desenvolver sentimentos persistentes de desvalia, insegurança e frustração.

Do ponto de vista psicodinâmico, essas experiências ativam angústias primárias, vivências de abandono, impotência e desamparo. A psique, diante disso, pode responder com retraimento, somatizações, quadros depressivos, transtornos ansiosos, dissociativos e estados de hipervigilância, como se o sujeito estivesse sempre em luta contra uma ameaça invisível, mas constante.

Como vimos acima a injustiça mina a sensação de pertencimento e de reconhecimento — pilares fundamentais para a constituição de uma autoestima saudável. Quando o sujeito não se sente validado pelo coletivo, não encontra espaço para se expressar ou se desenvolver de forma justa, instala-se um estado crônico de ressentimento, medo e insegurança existencial. Os afetos que emergem nessas condições — como raiva contida, desesperança ou desconfiança generalizada — produzem um terreno fértil para as doenças mentais.

Mais ainda: a injustiça cotidiana, banalizada e sistematizada, atua como um agente desagregador do tecido social. Quando o indivíduo internaliza que o mérito não vale, que os direitos não são respeitados e que os injustos são os premiados, rompe-se o pacto simbólico que sustenta a vida em sociedade. A confiança no outro, na lei e nas instituições se dissolve, gerando comunidades emocionalmente empobrecidas, marcadas por cinismo, indiferença e isolamento. O resultado é um processo de atomização psíquica, no qual cada uma luta por si, desconectado do todo.

Esse tipo de cenário favorece, ainda, a emergência de violências difusas — físicas, emocionais e simbólicas — como formas inconscientes de expressar ou compensar a frustração coletiva. O sujeito que vive sob constante injustiça tende a alternar entre estados de submissão e rebelião, oscilando entre apatia e explosão emocional. A sociedade, por sua vez, passa a produzir dispositivos de controle e repressão, em vez de cuidado e inclusão, aprofundando o ciclo da exclusão e do sofrimento.

É nesse sentido que a promoção da justiça não pode ser entendida apenas como uma agenda jurídica ou política, mas como um ato terapêutico coletivo. Restaurar a confiança, garantir reparações, promover equidade e restaurar o valor simbólico das pessoas são formas de curar as feridas sociais que adoecem silenciosamente os indivíduos.

Promover saúde mental em uma nação exige mais do que investimentos em clínicas e medicamentos. Exige justiça. Justiça nos salários, na educação, no acesso à saúde, na moradia, nas relações raciais, de gênero, de classe. Justiça nos tribunais, mas também nos bairros, nas ruas, nas escolas, nas famílias.

Conclui-se, portanto, que a justiça social não é um luxo ou um ideal utópico, mas um determinante central da saúde mental das populações. Onde ela se realiza, surgem confiança, solidariedade e equilíbrio psíquico. Onde ela falha, germinam angústia, frustração, adoecimento e colapso relacional. Uma sociedade justa é, em última instância, uma sociedade mais saudável — no corpo, na mente e no espírito de seus cidadãos.

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