A bipolarização política: expressão anunciada do fracasso

RUY PALHANO
Psiquiatra, Membro da Academia Maranhense de Medicina e Doutor Honoris Causa – Ciências da Saúde – EBWU (Flórida EUA).
A atual bipolarização política — no Brasil e em muitos outros países, onde vem se manifestando de forma mais declarada na sociedade contemporânea — pode ser compreendida como um sintoma de um esgotamento mais profundo: o fracasso das políticas públicas como instrumentos de mediação plural, de inclusão cidadã e de promoção de um pacto coletivo capaz de garantir justiça, proteção social e pertencimento.
A lógica do “ou você é A, ou é B” revela, antes de tudo, o colapso da mediação institucional, a falência do centro político como lugar de equilíbrio e articulação de interesses diversos. Em vez de promover convergência, o campo político tornou-se palco de antagonismos radicais, onde a identidade do sujeito é construída não por aquilo que propõe, mas por aquilo que combate.
Durante décadas, esperava-se que as políticas públicas fossem universais, capazes de contemplar as múltiplas e legítimas demandas da população. No entanto, o que se observou — particularmente nas últimas décadas — foi o aprofundamento das desigualdades, a precarização dos serviços essenciais, como saúde, educação e segurança, a corrupção endêmica e uma sensação generalizada de que o Estado serve a poucos, enquanto muitos permanecem invisíveis. Esse cenário alimentou o ressentimento e a frustração coletiva, preparando o terreno para a radicalização.
Quando a política deixa de ser um espaço de construção de consenso e passa a ser um campo de guerra moral e pessoal, o que emerge é a identidade de confronto: os cidadãos passam a se reconhecer não pelo que constroem, mas pelo que odeiam. Isso é indicativo de que o projeto político nacional — que deveria ser integrador, abrangente, democrático e resolutivo — falhou em sua missão histórica. A bipolaridade, nesse contexto, não é uma simples escolha partidária ou ideológica: é uma resposta emocional a anos de negligência institucional e promessas não cumpridas.
Grupos sociais inteiros, de forma incontrolada, veem-se forçados a escolher entre polos extremos porque não se sentem representados por estruturas moderadas, que perderam credibilidade, sensibilidade, sentimento grupal e poder de mobilização.
Essa radicalização progressiva carrega consigo um risco ainda mais grave: o de deflagrar medidas excepcionais que caminham em direção ao autoritarismo. Quando a sociedade se organiza em torno da lógica binária do “nós contra eles”, eliminando o meio-termo, o diálogo e a escuta, cria-se o ambiente propício para justificar ações políticas radicais sob o pretexto de “salvar a nação”, “restaurar a ordem” ou “proteger os valores”.
O discurso da exceção passa a se tornar desejável e até necessário. Assim, medidas autoritárias deixam de ser vistas como aberrações e passam a ser aceitas como soluções — desde que atinjam o “inimigo”. Nesse processo, consolida-se um sistema antidemocrático, onipotente, excludente e centralizador, que atua por meio do medo e da supressão da pluralidade.
Não se trata apenas de um retrocesso institucional, mas de uma mutação do próprio espírito democrático. Os poderes deixam de se equilibrar, a imprensa é deslegitimada, o Judiciário é desacreditado, e o Parlamento se transforma em uma arena de espetáculos moralistas. A consequência é a erosão lenta e progressiva da democracia, com a instalação de regimes que não toleram o dissenso, criminalizam o contraditório e domesticam a cidadania.
Portanto, a bipolarização política, de forma estrutural, revela a incapacidade do Estado e de suas políticas públicas de atender às demandas legítimas de um povo cansado, desigual e sem representação. Ao não oferecer respostas efetivas à população, ao permitir que os vínculos sociais fossem corroídos e ao se omitir diante da desigualdade crônica, o sistema institucional abriu espaço para o surgimento de messianismos políticos e soluções simplificadoras, que recusam o outro como fundamento da convivência.
Ignorar esses sinais seria subestimar o potencial destrutivo de uma sociedade que, ressentida e polarizada, caminha perigosamente rumo à radicalização autoritária. O desafio que se impõe, portanto, é duplo e urgente: reconstruir a confiança nas instituições democráticas e reimaginar um projeto nacional verdadeiramente plural, justo, inclusivo e sensível às dores e complexidades do povo.
É preciso resgatar a ideia de coletivo, revigorar o espaço público como território de escuta e reconstrução e impedir que o abismo social se transforme em uma sepultura para a democracia. A experiência histórica demonstra que sociedades que mergulham em radicalismos prolongados tendem a perder a capacidade de se reconhecer como comunidades políticas. O tecido social, já frágil, rompe-se quando a identidade coletiva é substituída pela identidade de facção, e a lógica da convivência dá lugar à lógica da hostilidade.
A polarização política transforma a política em um campo de guerra permanente, onde vencer significa destruir o adversário e não governar para todos, criando um ambiente propício ao surgimento de regimes autoritários legitimados pelo medo, pelo ressentimento e por narrativas totalizantes que reduzem a complexidade nacional a slogans simplistas, sem resolver problemas estruturais como desigualdade, exclusão e violência.
Nesse cenário, a democracia é corroída de forma gradual, sob a falsa normalidade do conflito constante, substituindo o diálogo e o respeito às diferenças pela lógica da eliminação do opositor, o que abre espaço para violência política, censura e supressão de direitos.
Romper esse ciclo exige um esforço coletivo de reconstrução civilizatória, com lideranças políticas e sociais corajosas, participação ativa da sociedade e a recuperação dos valores fundamentais da democracia para restaurar as pontes destruídas e impedir que o país permaneça preso em um jogo de soma zero, onde a verdadeira derrota seremos nós e a nação como um todo. E isto só será possível, entre outras coisas através de um diálogo profundo, sincero, aberto e responsável.
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