O abominável fracasso nas relações humanas

RUY PALHANO
Psiquiatra, Membro da Academia Maranhense de Medicina e Doutor Honoris Causa – Ciências da Saúde – EBWU (Flórida EUA).
Acredito que não haja qualquer dúvida entre nós que estamos atravessando um momento profundo e difícil, especialmente do ponto de vista sociocultural e comportamental, de amplas mudanças nas nossas relações humanas, gerando incógnitas, incertezas, receios e expectativas avassaladoras na perspectiva de para onde estamos indo.
A ascensão de movimentos como o Furry Fandom e a cultura das bonecas e esposas reborn não é acidente cultural, mas sintoma profundo das transformações nos vínculos humanos. Emergentes de uma epidemia global de solidão — 33% dos adultos relatam isolamento crônico, segundo a OMS — estes fenômenos se inserem num mundo onde comunidades e estruturas de pertencimento se dissolvem. Como alertou Bauman, vivemos numa modernidade líquida, sem vínculos duradouros.
Neste vazio, surgem vínculos alternativos imunes ao risco: uma fursona nunca julga; uma boneca reborn não morre; uma esposa de silicone não trai. Han, chama isso de fuga da “dor do Outro”, a recusa contemporânea do conflito e da imprevisibilidade. A tecnologia, ao permitir extrema personalização de afetos e companhias artificiais, reforça essa fuga: avatares e bonecas hiper-realistas simulam relações, mas não exigem alteridade. Levinas já advertia: é no rosto do outro real que experimentamos o apelo ético.
Substituí-lo por artefatos é reduzir o vínculo a uma simulação. Psicanalistas veem aí objetos transicionais adultos, como descreveu Winnicott. Adèle Van Reeth denuncia a “capitulação da alteridade” e a conversão do outro em mercadoria emocional.
Embora alguns defendam o uso terapêutico de reborn, como em lutos perinatais, o fenômeno revela uma sociedade profundamente enferma: criada para se hiperconectar, mas incapaz de sustentar vínculos autênticos e profundos. Furries e reborn são expressões de um mal-estar coletivo, não são aberrações, servem para denunciar as referidas mudanças.
Nosso cérebro foi moldado para cerca de 150 vínculos significativos (Número de Dunbar), baseada em estudos antropológicos e neurocientíficos conduzidos principalmente pelo antropólogo britânico Robin Dunbar. É uma teoria que propõe que os seres humanos conseguem manter, em média, cerca de 150 relações sociais estáveis e significativas. Ocorre que a cultura digital banalizou a intimidade e superlotou nossa rede social com conexões rasas.
A pergunta não é “por que fogem da realidade?”, mas “que realidade criamos que os faz fugir?”. Se não refundarmos comunidades reais e espaços de alteridade, o amor artificial persistirá como monumento à falência afetiva da era contemporânea.
Do ponto de vista clínico, em casos extremos, tais comportamentos podem configurar psicopatologias, como isolamento incapacitante ou delírios de identidade espécie. O DSM-V (catálogo das doenças mentais segundo a Ass. Psiquiátrica Americana – APA), os reconhece como transtornos quando há sofrimento clinicamente significativo.
Mas, como lembra Foucault em “História da Loucura”, toda sociedade patologiza aquilo que desafia sua racionalidade dominante. A psiquiatria crítica propõe olhar além dos indivíduos, para o sistema que produz esse sofrimento.
O capitalismo tardio mercantilizou os vínculos humanos, a cultura digital banalizou o outro e a crise ecológica deslocou nosso lugar simbólico. Hartmut Rosa fala em aceleração alienante, Han denuncia a sociedade do cansaço. O verdadeiro sintoma psicótico talvez seja a recusa da sociedade em reconhecer-se como agente de sua própria miséria afetiva.
Não são os furries ou donos de reborn os doentes, ou mesmos outras formas idiossincrásicas de nos comportarmos ou nos relacionarmos, mas a estrutura que faz dessas alternativas afetivas e psicológicas respostas racionais à precarização dos vínculos. Como disse Basaglia, a loucura pode ser “a negação da negação”: um gesto de resistência diante da negação institucional da dignidade relacional.
Nosso grande desafio modernamente, não é, tão somente, medicalizar quem recusa os laços danificados, mas reconstruir com certa urgência as bases sociais absolutamente necessárias ade um encontro humano pleno, desejado, arriscado, imperfeito — e, volto a dizer, profundamente necessário.
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