O Homem, inimigo de si mesmo

RUY PALHANO
Psiquiatra, Membro da Academia Maranhense de Medicina e Doutor Honoris Causa – Ciências da Saúde – EBWU (Flórida EUA).
É surpreendente o acúmulo de contradições e de falsidade que vem ocorrendo conosco, na era moderna. O homem contemporâneo relaciona comportamentos contraditórios entre o que diz e o que faz. A impressão que se tem é que, cada vez mais, nós, seres humanos, nos distanciamos da sinceridade, da franqueza, da verdade e passamos a utilizar distintas máscaras de conformidade com as circunstâncias e com os momentos.
Sabe-se, que, ao longo dos séculos, a humanidade trilhou um percurso extraordinário, acumulando avanços científicos, tecnológicos e sociais que, em teoria, deveriam conduzi-la a níveis superiores de bem-estar, liberdade e plenitude. Entretanto, na contramão dessa trajetória progressista, o homem moderno revela-se, paradoxalmente, trapaceiro, enganador, mentiroso e algoz de si mesmo.
As graves contradições que ele mesmo arquitetou e sustenta, no seio da vida contemporânea, não apenas minam os benefícios que ele vem conquistando ao longo dos tempos, como também aprofundam crises existenciais e sociais sem precedentes. A falta de franqueza ou insinceridade passou a si constituir como uma marca registrada dos comportamentos humanos, atualmente.
Vivemos numa época em que o acúmulo de riquezas e o avanço tecnológico atingiram patamares antes inimagináveis, mas a desigualdade social global nunca foi tão acentuada. A promessa de que o desenvolvimento traria mais conforto, segurança e felicidade esbarra na realidade de milhões de pessoas que vivem à margem do acesso a direitos básicos, alimentação, educação, saúde e outras prerrogativas fundamentais.
A contradição torna-se ainda mais evidente e gritante quando se observa que, mesmo entre aqueles que usufruem dos avanços da modernidade, prevalece uma inquietação profunda, marcada por ansiedade, insatisfação, temores difusos e uma constante busca por algo que nunca parece ser plenamente alcançado, isto é, sempre inquieto em tudo.
O homem moderno, ao mesmo tempo em que celebra a expansão do conhecimento e a supremacia da razão, entrega-se a irracionalismos perigosos, cultivando discursos extremistas, negacionistas e pautados na intolerância. Em plena era da informação, assiste-se a um preocupante retrocesso cultural e ético, em que a verdade se torna maleável e as crenças pessoais, por vezes infundadas, se sobrepõem aos fatos comprovados.
Esse paradoxo revela um mal-estar estrutural, qual seja o de se saber, que deveria libertar, por vezes aprisiona em bolhas de desinformação e preconceito. Outro abismo que expõe as contradições modernas é a relação do homem com o meio ambiente. A vida contemporânea é moldada por padrões de consumo que exigem a exploração incessante dos recursos naturais, mesmo diante da evidente degradação do planeta.
A contradição aqui torna-se cruel, pois o modelo econômico que promete conforto e progresso é o mesmo que compromete a sobrevivência futura da humanidade. Em busca de mais bem-estar material imediato, o ser humano semeia a sua própria escassez e sofrimento.
Do ponto de vista do bem-estar psíquico e emocional, a vida moderna também carrega tensões e contradições insuportáveis. A incessante pressão por produtividade, a valorização extrema da aparência e do sucesso individual criaram sociedades em que o descanso, a contemplação e as relações profundas são vistas como improdutivos e, portanto, descartáveis.
Resultado disso tudo, acima descrito, é a proliferação de transtornos como ansiedade, depressão, burnout, estresse, abuso de álcool e de outras drogas, suicídios e a violência crescentes, indicando que, em muitos aspectos, o modo de vida moderno adoece mais do que cura, isola mais do que integra, fragmenta mais do que conecta.
As relações humanas, que deveriam ser fonte de apoio, segurança e sentido, tornaram-se, em muitos contextos, superficiais, mercantilistas e utilitárias. A exacerbação do individualismo e a competição desenfreada minam a capacidade de empatia, de solidariedade de pertencimento e de amor uns pelos outros, deixando o homem moderno cada vez mais vulnerável, embora rodeado de pessoas.
A promessa de liberdade ilimitada, sem o amparo de vínculos autênticos e responsabilidade coletiva, resultou não em plenitude, mas em angústia, desorientação e solidão. Portanto, pode-se afirmar, sem exagero, que o homem moderno se tornou o principal carrasco de sua própria existência.
Ao invés de ser o artífice consciente de sua liberdade e dignidade, ele se transformou em prisioneiro das estruturas que criou, vítima de um progresso que perdeu seu sentido humano e existencial. As conquistas modernas, sem dúvida, trouxeram avanços inegáveis, mas, ao mesmo tempo, revelaram-se insuficientes para garantir o verdadeiro bem-estar dos seres humanos, entendido não apenas como ausência de dor ou carência, mas como plenitude, propósito e comunhão na sua existencialidade.
Todavia, essa constatação não precisa conduzir ao niilismo ou à desesperança. Reconhecer que o homem é, muitas vezes, algoz de si mesmo é o primeiro passo para que ele possa se tornar, novamente, autor e guardião de sua própria história.
A saída não reside na negação do mundo moderno, mas na sua humanização, isto é, faz-se necessário reconectar-se a valores éticos universais, reconstruir vínculos comunitários autênticos, respeitar os ritmos da natureza e reencontrar, no silêncio e na reflexão, o sentido mais profundo da existência.
A modernidade, com todas as suas ambivalências, ainda pode ser um espaço de regeneração e de ressignificação. Para isso, o homem precisa cessar a guerra silenciosa que trava contra si mesmo e reconciliar-se com sua condição finita, relacional e interdependente. Somente então poderá deixar de ser algoz para tornar-se, enfim, guardião da vida.
Vivamos a vida em sua plenitude, de conformidade com os interesses coletivos. Exerçamos com dignidade, com naturalidade a franqueza, a sinceridade, a harmonia entre nós mesmos e acima de tudo exortemos o respeito mútuo, o companheirismo e a solidariedade, pois nestas condições atuais, infelizmente, o que está havendo de forma acintosa e progressiva é o desmando, o desamor, a violência, o autoritarismo e a arrogância.
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