O redescobrimento da vítima do gênero feminino e a Lei 14.994/2024: desafios para a persecução penal no ano de 2025
Dentro das políticas criminais, o Brasil se encaixa, progressivamente, no inchaço legislativo. Critica-se a atividade exaustiva de criminalizar e de tornar penalmente relevantes diversas condutas. Diz-se, sobretudo, que o poder legiferante se utiliza de tal artimanha a fim de silenciar setores que pedem punições mais severas, atuando de maneira genérica e populista. Esse artigo faz um contraponto.
No mês de outubro de 2024 foi sancionada a Lei 14.994/2024, responsável pela readequação de diversas matérias penais e processuais penais na sistemática da violência por razões da condição do sexo feminino.
Se por um lado há quem critique o ativismo penal, a atividade legislativa também vem para suprir o clamor de eixos da sociedade e mudanças procedimentais fulcrais à persecução penal e à consecução do ideário de justiça. Dentro das nossas humanidades, e aqui me incluo enquanto mulher, situações concretas impossibilitavam o ius puniendi estatal, dando ao agressor o sentimento aprazível da impunidade e, à sociedade, o gosto amargo da injustiça.
Em aporte doutrinário, no eixo das cifras criminais, o sociólogo Edwin Sutherland utilizou duas nomenclaturas importantíssimas, fundamentais à análise da Lei 14.994/2024. Fala-se da cifra negra, como aqueles casos criminais que não chegam ao conhecimento das autoridades e, cifra cinza, respectivamente às ocorrências registradas, das quais não se deriva um inquérito policial ou uma ação penal.
São perfeitamente familiares os dois conceitos acima no tema violência contra a mulher. Afinal, quem nunca tomou conhecimento de uma violência contra a mulher que “nunca deu em nada”? Ou quem nunca, dentro da atividade policial, conduziu um ofensor e uma vítima à Delegacia de Polícia e lá lidou com o juízo de retratação – famoso “só queria dar um susto para olhar se ele parava”? São circunstâncias rotineiras que contaminam os relatos das vítimas, de cidadãos, vizinhos, parentes e de operadores da justiça, tais como policiais militares, civis, delegados, promotores etc.
Quando se abordam os desafios da persecução penal e a Lei 14.994/2024, fala-se, especificamente, de diversos procedimentos alterados, cujo manejo, no caso concreto, dará uma resposta progressiva e pontual aos questionamentos acima.
Ab initio, põe-se fim às celeumas jurídicas a respeito da exigência de formalidade à representação, como condição de procedibilidade, nos casos de ameaça por razões da condição do sexo feminino.
Anteriormente à novatio legis citada, era comum a vítima desistir em Delegacia de Polícia, após a condução do agressor pela suposta prática do art. 147 do Código Penal (CP), ou seja, crime de ameaça. Agora, existindo norma penal em branco homogênea e expresso o conceito de crime por razões da condição do sexo feminino (art. 121-A, §1º, I e II do CP), correlacionado à Ação Penal Pública Incondicionada, o Delegado de Polícia deverá autuar o conduzido em flagrante delito, sem embaraços, pelo art. 147, § 1º e § 2º do CP. Incabível, portanto, a retratação da vítima e, sobretudo, a aplicabilidade de quaisquer medidas despenalizadoras da Lei 9.099/1995.
Há mudança, ainda, na práxis policial e forense, na previsão de penas mais rigorosas, a exemplo das lesões corporais ocorridas em ambiente doméstico ou por questões de gênero (art. 129, §9º e §13º do CP). Em algumas autuações no flagrante delito era arbitrada a fiança pelo Delegado de Polícia, consoante permissiva do art. 322 do Código de Processo Penal – por se tratar de crime (art. 129, § 9º do CP), cuja pena máxima não ultrapassava quatro anos.
No gozo da liberdade provisória com fiança arbitrada, desde já, em Delegacia e, mesmo que impostas as Medidas Protetivas de Urgência, verifica-se que, de antemão, o pagamento da fiança tornar-se-ia, para a vítima, uma medida branda ao agressor – trazendo-lhe o sentimento de insegurança: “ele pagou e já está na rua, compensa”. Agora, ante a alteração citada, o autuado será direcionado ao Poder Judiciário e somente o juiz, após oitiva do Ministério Público Estadual e audiência de custódia, poderá impor as cautelares cabíveis – inclusive a fiança.
Arbitrar fiança pelo Poder Judiciário não seria o mesmo que arbitrar fiança em Delegacia de Polícia? A resposta é direta: não. Levar o autuado às outras esferas, sobretudo, à presença do Juiz e do Promotor de Justiça é, também, partilhar a responsabilidade da resposta estatal, aos casos de violência contra a mulher, com todos os atores do controle social formal.
Salutar frisar que a inserção de penas mais rigorosas, inclusive, impede a ocorrência contumaz do instituto da prescrição, seja da pretensão estatal punitiva ou executória, traduzida na fala em audiências: “Dr. faz tanto tempo que eu nem lembro”.
É habitual nas Varas Únicas do interior do Maranhão, perpassando às Varas de Violência Doméstica e Familiar não só de São Luís/MA, mas de todo o Brasil, a extinção de procedimentos pela ocorrência da prescrição. Anteriormente, as penas de três meses a três anos de detenção eram insuficientes à garantia de uma persecução penal efetiva. Entre o recebimento de denúncia até a prolação de sentença ou acórdão condenatório, o trâmite prolongado ultrapassava os limites baixíssimos estabelecidos na correlação com o art. 109 do CPB.
A Lei 14.994/2024 dá ao Sistema de Justiça mais tempo para a persecução penal: inseriu causas de aumento de pena nos crimes contra a honra; criou o tipo penal específico “feminicídio”; alterou o patamar para progressão de regime de pena em 55% (cinquenta e cinco por cento), se o apenado condenado por feminicídio for primário, vedando o livramento condicional; triplicou a pena no caso de contravenções penais e aumentou a pena do crime de descumprimento de medida protetiva.
Por outro lado, há que se vigiar se, de fato, existe uma tramitação prioritária destes casos, fazendo da Lei 14.994/2024 uma lei de letra viva com força normativa e não puramente semântica. A persecução penal para ser efetiva não pode, sempre, socorrer-se das alterações legislativas. Hoje, elas têm uma razão teleológica de ser. Não há pena perpétua no país, por força constitucional, e para tanto, vigem as regras prescricionais, a fim de que se evitem procedimentos ad perpetuam e constrangimento ilegal.
Entretanto, para a contemporaneidade, simbolicamente as alterações legislativas deixam ao agressor a sensação de que o sistema recrudesce à medida de que é inaceitável, passados tantos anos, o prolongamento de qualquer tipo de violência por questões de gênero.
Ao controle social formal é imprescindível que faça uma releitura do Direito Penal e, quiçá, de todo o Sistema de Justiça. As alterações legislativas sobrelevam a indispensabilidade de oitiva das camadas anteriormente silenciadas, emergindo o tema da inoperância do Direito e o seu poder coercitivo nos casos de violência contra a mulher. Ultrapassou-se o viés de neutralização da vítima e do garantismo penal hiperbólico monocular.
O Poder Legislativo atuou. E o Sistema de Justiça, como se comportará na aplicabilidade legal? Após as mudanças citadas, que se faça, sempre, jus ao princípio da proibição da proteção insuficiente: para todos, sim. Contudo, mais do que nunca, para todas nós.
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