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A cidade que houve quando o avião passou – Uma exposição de Marçal Athayde

Luís Inácio Oliveira Costa*

Tempos e espaços diversos se cruzam inesperadamente na memória e na imaginação. Em 1937, a pioneira aviadora norte-americana Amelia Earhart, ao sobrevoar o Nordeste do Brasil, tirou uma fotografia aérea da cidade de São Luís do Maranhão. Trinta anos depois, em meados dos anos 60, o poeta maranhense Ferreira Gullar escreveu o poema Uma fotografia aérea depois de ter se deparado, numa espécie de susto poético, com uma fotografia de sua cidade de infância, muito provavelmente o registro aéreo feito por Amelia Earhart.
Quase cinquenta anos depois da publicação de Uma fotografia aérea, o artista plástico maranhense Marçal Athayde retoma e recria o poema de Gullar através de quase 30 trabalhos, entre pinturas e objetos, reunidos agora nesta exposição que também recolhe no poema a sua senha e o seu título – A cidade que houve quando o avião passou.
Tempos e espaços se cruzam vertiginosamente nesta fotografia aérea revisitada. Athayde redescobre a origem visual do poema mas também nos faz redescobrir o jogo entre memória e imaginação. Um poema que evoca a cidade pode ser despertado por uma fotografia inesperada e não por acaso o ato fotográfico tem a ver, entre outras coisas, com a tentativa de guardar um flagrante numa imagem congelada, reter o tempo que passa (a cidade que houve).
Fotografia e poesia têm também as suas afinidades nem sempre tão claras de imediato. Ambas operam muitas vezes com esse jogo da rememoração e da criação de imagens e, por isso mesmo, buscam condensar nossa experiência temporal, tão intensa quanto fugaz, numa imagem (fotográfica ou poética). Vale lembrar que Gullar, pouco antes de fugir do Brasil, num rabo de foguete, como um exilado da ditadura militar, se lançava de corpo e alma numa aventura de rememoração poética da cidade perdida de sua infância.
Em Uma fotografia aérea e Praia do Caju, dois poemas seminais de Dentro da noite veloz, e mais ainda na vertigem poética do Poema sujo, a cidade de São Luís ressurge (num entrechoque de tempos, num relâmpago revelador, num instantâneo fotográfico) sob a forma de uma imagem já extinta e no entanto ainda dotada de uma estranha força vital – sob a forma de uma imagem poética.
Esses trabalhos de Athayde, nascidos sob o impacto e o influxo da poesia de Gullar, se constroem precisamente a partir da força da imagem poética. Há neles um olhar de fotógrafo-poeta. São flagrantes da cidade o que esse olhar parece perseguir com uma atenção singular. Como para o poeta, que, no seu exílio, rememora/redescobre/reinventa a São Luís perdida do menino que ele foi, também para este fotógrafo-poeta se trata de flagrar a memória viva da cidade, ali onde a vida de repente bate e o seu sangue pulsa nas coisas mais miúdas e cotidianas.
Não é de estranhar o impacto que a leitura e a releitura de Uma fotografia aérea provocou em Athayde (o impacto que provoca em todos nós!), a ponto de, num surto criativo em plena pandemia, ele ter produzido todos esses objetos pictórico-poéticos em torno da poesia de Gullar. Não é de estranhar porque, no fundo, há uma afinidade entre essas duas poéticas da cidade, a de Gullar e a de Athayde.
E talvez uma forma de mergulhar nos trabalhos aqui reunidos seja deixa-se conduzir por essa poética da cidade. É assim que, nesses novos trabalhos do artista, São Luís ora se revela uma cidade fantasma (uma ilha distante?) que um dia houve quando o avião passou, ora emerge como uma cidade ao mesmo tempo bela e estranha que sempre nos escapa e nunca se deixa apreender inteiramente por fotografias aéreas.
Não custa lembrar a função estratégica de mapeamento geopolítico que as fotografias aéreas cumpriram antes da tecnologia muito mais eficaz dos satélites, o contrário da função poética que uma fotografia aérea poderia inesperadamente ganhar nas mãos de um poeta.
É o próprio Gullar que nos lembra num outro poema decisivo, A vida bate: “A cidade. Vista do alto/ela é fabril e imaginária, se entrega inteira/como se estivesse pronta./Vista do alto,/com seus bairros e ruas e avenidas, a cidade/é o refúgio do homem, pertence a todos e a ninguém./Mas vista/ de perto,/revela seu túrbido presente, sua/carnadura de pânico: as pessoas que vão e vêm/que entram e saem, que passam/sem rir, sem falar, entre apitos e gases”. Porque lá embaixo, já fora do poder de foco da fotografia aérea, “entre apitos e gases”, a cidade viva pode revelar-se em seu “túrbido presente”, em sua “carnadura de pânico”. Ali onde ela se deixa flagrar em suas despercebidas intensidades.
Algo silencioso mas intenso vibra sobre o polêmico João Lisboa ou o romântico Gonçalves Dias já transformados em estátua e praça enquanto o avião cruza o céu da cidade provinciana. Nos objetos de Athayde (como nos poemas de Gullar), o velho céu romântico da cidade de São Luís é delicadamente destroçado. Quase se ouve o barulho do motor do bicho que voa sobre os telhados, mas Athayde nos faz ouvi-lo também (como Gullar) do ponto de vista de quem está lá embaixo nas ruas, marés e quitandas da cidade, pescadores, verdureiros e carvoeiros, lavadeiras e meninos empinando pipa. As entranhas do poema sujo da cidade que o avião não vê.
É desse modo que Athayde parece querer nos oferecer outras visibilidades poéticas da cidade – as suas belezas ensolaradas e no entanto sombrias, a sua “luz crua”, as suas faces contraditórias, os seus pontos cegos, as suas fantasmagorias.
Alguns trabalhos contrastam e ao mesmo tempo superpõem a cidade já desaparecida (que já não nos ouve) e a cidade presente (com seus barulhos ensurdecedores), a cidade perdida na memória e a cidade erguida com seus novos edifícios sobre os escombros do passado. Como se o poeta-fotógrafo quisesse também fazer virem à tona camadas temporais e históricas da cidade, cidades soterradas no solo do presente, cidades esquecidas que já não conseguimos entrever.
Para criar essas outras visibilidades da cidade, Athayde lança mão dos seus objetos poéticos, caixas que se entreabrem e se intercalam, que jogam com a materialidade do suporte e com a superfície (aparentemente) plana da tela, pintura que se arrisca nas torções do espaço. Podem ser chamados com justiça de objetos poéticos porque querem, em sua brincadeira ousada, entretecer tempos e espaços.
Querem, ao mesmo tempo, entrecruzar pintura e formas tridimensionais tendentes à escultura, romper sutilmente essas fronteiras. São objetos singulares que convocam e provocam a nossa visibilidade, jogam poeticamente com nossa percepção e convidam a brincar fora do esperado. Por isso mesmo, se oferecem como objetos poéticos. Por isso mesmo, tangenciam de algum modo aquilo que o poeta-crítico Gullar (o mesmo da Fotografia aérea e do Poema sujo) denominou algum tempo atrás de “não-objeto”, já que os objetos poéticos de Athayde brincam com a nossa visibilidade do mundo (e da cidade), com a materialidade do objeto artístico, com os limites da própria pintura.
São objetos que, ao que parece, querem nos fazer ver dobras meio recônditas do espaço e do mundo ali figurado e, nesse seu jogo, buscam dimensões escondidas ou esquecidas no nosso espaço cotidiano, tridimensionalidades abertas ou apenas sugeridas no espaço bidimensional da pintura. Esquinas inesperadas na cidade aparentemente conhecida, brechas de uma outra visibilidade. Lúdicos e poéticos, os objetos de Athayde, ao acenar para as fronteiras da pintura, também nos convidam a “reaprender a ver o mundo” (segundo as palavras do pensador Maurice Merleau-Ponty, lido também por Gullar).
Reaprender a ver a cidade num momento em que as cidades e, com elas, o mundo parecem ser arrastados numa enxurrada, parecem querer se afogar num mar de imagens chapadas e unidimensionais, imagens aterradoramente onipresentes, ao mesmo tempo massacrantes e banais. Outras visibilidades, outras possibilidades de ver o mundo (e a cidade) – é ao que nos convidam esses trabalhos de Athayde na sua retomada do gesto poético de rememoração/imaginação de Gullar. Atentos ao desconcerto da vida que bate e à frágil força da poesia, os objetos de Athayde (como os poemas de Gullar) nos apontam outros modos de ver. Outros tempos e espaços que aqui se entrecruzam poeticamente.

Aqui está
num papel
a cidade que houve
(e não me ouve)
com suas águas e seus mangues
aqui está
(no papel)
uma tarde que houve
com suas ruas e casas
uma tarde
com seus espelhos
e vozes (voadas
na poeira)
uma tarde que houve numa cidade
aqui está
no papel que (se quisermos) podemos rasgar

*Luís Inácio Oliveira Costa é poeta maranhense, professor do Departamento de Filosofia da UFMA e pesquisador de estética

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