O feminino rechaça o universal. Resiste ao todo!
Eugênia de Azevedo Neves*
O feminino, neste mês, volta à cena sem, no entanto, na contemporaneidade ter sido esquecido.
No início da psicanálise, ainda no século 19, ao atender as pacientes histéricas, Sigmund Freud se perguntou: “o que querem as mulheres?” Ao se perceber à deriva, em seus estudos finais, recomendou: perguntem aos cientistas, aos poetas ou a elas mesmas.
Os cientistas demarcaram o feminino em sua dimensão biológica, a partir da diferença dos caracteres sexuais, pouco avançando na questão da feminilidade. Por sua vez, os poetas – em sua maioria esmagadora constituída por homens – falaram das mulheres a partir de sua visão masculina, tornando-as objetos de adoração ou de fetiche. Dividiram as mulheres em putas e santas.
E as próprias mulheres, o que falaram sobre si?
A elas foi reservado um espaço estreito, sem fala e muitas perguntas silenciadas. No entanto, ao começar a se definir o início desse vácuo, foram surgindo respostas e outras formas de estar no mundo. Acontecimentos como as grandes guerras mundiais, notadamente a segunda, quando as mulheres foram trabalhar nas indústrias, e a criação da pílula anticoncepcional, nos anos 60, passo fundamental para a autonomia sexual feminina, foram forjando um novo estatuto para a classe das mulheres. E a história, lentamente, começa a mudar.
Como afirma Newton da Costa, lógico paraconsistente, “as forças mudam devagar…”
E aquela pergunta que sequer era possível antes de Freud, foi povoando o cenário contemporâneo, e sendo respondida pelas próprias mulheres, seja em espaços privados, públicos, ou através da literatura, poesia, arte, criações de que tanto se valeu a psicanalise no início de sua construção.
Nosso tempo traz a marca do feminino. Fala-se porque nunca falado. Fala-se porque indizível. Fala-se porque, como nos diz Lacan, “A mulher não existe”. Existem as mulheres, cada uma a responder sobre si, sobre este vasto mundo que não se consegue matar. Fala-se porque como nos diz Guimarães Rosa: “A linguagem e a vida são uma coisa só”.
O que querem as mulheres? O feminino quer vida, vida de si mesmo, e não se assenta em lugares comuns, fáceis de compreensão. Falar do feminino como mulher exige um certo distanciamento. Não o trato na condição de menos nem de mais porque resvalaria para o masculino que, por milênios, comandou o lugar de onde a feminilidade se construiria. “A reivindicação é irmã da doença da comparação”, nos diz Colette Soler.
Assim, falo da mulher de um outro espaço que não o da conferição com os homens, que não com o meu mundo que, mesmo sendo feminino, diz sobre mim e não sobre as outras e, de lá, vejo a indefinição.
São muitas, muitas em rastros de sangue, do ventre, da faca, da arma de todo dia. Muitas em dança, em riso entrelaçado ao não dito do parto aguardado do filho e de si. Algumas serenas, achando-se pequenas, mas, de fora, são elas as grandes senhoras, donas dos bailes e da vida. Vejo a fé em suas contas de rosários e vejo medo nesse mesmo terço, onde tecem a pretensão de chegar aonde não sabem.
Outras são tão elas, diferentes sempre de todas elas, caminhando no compasso de trompaço, sem jeito, em meio ao não entendido, mas por elas explicado. Não se pode esquecer aquelas que pensam saber e, nisso, pensam tudo poder, mas não podem. A psicanálise sabe disso! Contam tanto entre elas sobre si mesmas, tão desconhecidas entre si.
As mulheres querem vida e, como vida, seguem como pergunta. Uma pergunta sem reposta porque a cada uma ou a cada um que ocupe a posição feminina haverá uma forma de falar sobre o indizível que hoje fala.
Estão nas ruas, nas vozes que se multiplicam e, seja num canto de amor ou de dor, é um mundo a desvelar. Desvelar o manto que em nada agasalhou o feminino: o lar, o não tão doce lar. Recobriu-lhe a existência, até mesmo a sua condição de falta-a-ser que somos todos nós, masculino e feminino. Só havia a falta, o ser a construir lhe era barrado por um muro fálico.
O feminino diz não a este muro e cresce na medida de seu próprio furo. Segue em falta, mas em fala e voz, em papel social, em função de vida, rechaçando a morte que um dia fez dela o nada. Mas, sobre o nada, elas entendem. Fizeram e fazem dele o singular, o próprio de cada uma, um olhar, um dizer, um caminho em nada universal.
O feminino não faz ciência, que a tudo pretende responder. Vive, mesmo que, por vezes, seja ainda na impossibilidade! Resiste a todo tipo de corte e morte, ocupando um campo próprio. Essa é sua insígnia distintiva, o indefinido.
Talvez seja a mulher uma saudade que cada uma encontra na sua fala perdida, antes interditada. Avançou nas brechas de sua própria ausência, hoje presença. Atualmente, a mulher é uma escrita que não termina! Continuemos a falar…
*Eugênia de Azevedo Neves é psicóloga – CRP 22/04932; juíza, escritora e poeta
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