Talento de um veterano calejado em jornal
Texto de Nonato Reis
Manoel dos Santos Neto, o Manoelzinho, é um caso atípico na imprensa brasileira de jornalista metódico e pesquisador por excelência. Que outro profissional teria um banco de dados capaz de dar suporte a reportagens de cunho histórico e um obituário com texto completo sobre os principais personagens da política nacional?
No dia em que José Sarney vier a óbito, o Jornal Pequeno, que tem a honra de mantê-lo em seu quadro funcional, poderá publicar material precioso sobre a vida e obra desse que é, seguramente, o maranhense de maior destaque do século XX.
Eu conheci Manoelzinho no Jornal de Hoje, e apesar de fazermos parte da mesma geração de jornalistas, à época eu ainda era um profissional em início de carreira, ao passo que ele já havia percorrido uma vasta estrada.
Não esqueço os conflitos recorrentes entre ele e Regis Marques, por conta de suas matérias. Regis era então chefe de reportagem do JH e Manoelzinho, repórter de cidade. Ocorre que Manoelzinho, identificado com a luta de classes, ignorava as pautas de Regis, para dar prioridade a temas de natureza sindical, o que provocava bate-boca e inconformismo.
Iríamos nos encontrar novamente na redação de O Estado, em 1991; e ali era ele quem dava as cartas como chefe de reportagem, para o meu privilégio, que ficava com as matérias mais interessantes e os ângulos tão bem sugeridos. Coube a mim e a ele escrever sobre a visita do Papa João Paulo II a São Luís, numa cobertura memorável, que teve a coordenação de Ederaldo Koza, então editor-chefe do jornal.
Nosso último encontro de trabalho foi como assessores de imprensa do Governo do Estado, entre 1994 e 1996. Manoelzinho é simples, humilde, de fala mansa e sorriso fácil, extremamente tímido, mas que surpreende após alguns copos de cerveja, quando então se transforma num sujeito extrovertido, brincalhão e às vezes irreverente.
Manoelzinho, que eu trato, carinhosamente, de chefe Manoel, é um boêmio por excelência, apaixonado por reggae, ritmo do qual se tornou um verdadeiro pé de valsa.
Numa abertura de Expoema, em que a então governadora Roseana participou, em cumprimento a um ritual de décadas, que obrigava o chefe do Executivo a se fazer presente, Manoelzinho e Isaurina Nunes foram escalados para fazerem a cobertura. Concluído o trabalho, ainda cedo, Manoelzinho, que andava a bordo de uma moto, sugeriu à colega que recusasse o carro da Secom e deixasse para voltar com ele; não demoraria, era só o tempo de dar uma olhada nos stands.
Isaurinha topou. Manoelzinho descobriu o Sonzão do Carne Seca, que tocava pedras de responsa. O chefe Manoel, como bom regueiro, adentrou o recinto e começou a dançar, uma pedra atrás da outra.
Isaurina, do lado de fora do barracão, olhou o relógio, começou a ficar impaciente. Entrou e foi ter com o chefe Manoel, que a essa altura, já exibia a camisa molhada de suor. O chefe pediu paciência à colega. Era só mais uma música. Logo iriam embora. Nisso, deu uma, duas, três horas da manhã, e nada do chefe largar as pedras. Isaurina teve que pegar um táxi.
Chefe Manoel, além de excelente jornalista, é um escritor por excelência, já com vários livros publicadas, todos obras de grande interesse histórico, resultado de minuciosa pesquisa em jornais e fontes bibliográficas de época, como “O Negro no Maranhão: A escravidão, a liberdade e a construção da cidadania”; “A Ressurreição do Padre”, que faz um resgate da vida e da obra do Padre João Miguel Mohama, e mais recentemente “Othelino: o herói da imprensa livre”, que retrata a trajetória do jornalista Othelino Nova Alves.
Como se não bastasse os diversos momentos em que dividimos o ambiente de trabalho, coube ao chefe Manoel o papel de porta-voz do Jornal Pequeno no episódio que marcaria o meu desligamento do JP, após seis anos como autor de uma coluna dominical. Um dia o meu celular toca e ao atender, dou com a saudação que se tornara um hábito entre nós. “Chefe Reis, tudo bem contigo?” E depois o que interessava: “você me desculpa, mas fiquei com a atribuição de lhe explicar o porquê da sua crônica não ter sido publicada”.
A crônica a que ele se referia tinha como título “Alvinho e a maria cinco dedos”, um texto bem humorado que narra as peripécias de um jovem adolescente do interior que, às voltas com altas taxas de testosterona, e diante da escassez de sexo, apela à masturbação, como forma de aliviar a tensão hormonal.
O JP, como eu ficaria sabendo, julgara o texto ofensivo à moral e aos bons costumes. Eu, que nunca aceitei qualquer forma de censura, entendi que o único caminho possível era o da porta, até porque, para um jornal que fez história clamando por liberdade de expressão, aquilo era controverso, para dizer o mínimo.
Restou-me o reconhecimento ao chefe Manoel pela forma cortês e elegante com que me esclareceu o episódio, e também a gratidão ao JP, pelos anos de parceria.
(Este texto integra o livro Lembranças de Repórter, com lançamento para setembro deste ano. O novo livro de Manoelzinho – “Valha-me Deus! Notícias que Não Publiquei” deve sair no final de dezembro de 2022)
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