A esfera do “não-ser humano”: diálogos entre o racismo institucional, a necropolítica e a desumanização dos (as) negros (as)
Emanuele de Fátima Rubim Costa Silva*
A Constituição da República trouxe um paradigma democrático, em que os postulados da cidadania e da dignidade da pessoa humana constituem uns de seus fundamentos. Ao lado disso, o princípio da não discriminação ganhou contornos de direito fundamental, além de ser um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil.
A forma constitucional democrática está desenhada desde 1988, há mais de três décadas. No entanto, existe uma evidente contradição quando se observa o cotidiano da violência racial. Há um racismo institucional escamoteado em normas aparentemente neutras e em posturas de intervenção estatais que se configuram como mecanismos de controle dos corpos negros.
Com efeito, desde a escravidão e, em continuidade, no período pós-abolição, a ordem jurídica nacional consolidou o signo da inferiorização do (a) negro (a). Ideologias de branqueamento, apoiadas por alguns cientistas da época e pela Igreja, reforçadas pelo Estado, além do mito de uma democracia racial, impulsionaram a invisibilização sofisticada da situação do (a) negro (a), capaz de reproduzir narrativas e práticas racistas de forma quase irrefutável.
O corpo negro sempre é fungível, remontando a ideia de que os corpos despossuídos dos (as) escravos (as) são vistos como propriedade, sob o domínio e o poder dos seus senhores. Quando necessário, como qualquer mercadoria, esse corpo negro é descartado, subutilizado. A condição ontológica de não humanidade da negritude, na sua dimensão do não-ser humano, conforme a professora Thula Pires, da PUC do Rio afirma, exige a compreensão de que aos (às) negros (as) foram impostos processos de desumanização, de extermínio permanente, pelas mais variadas práticas de morte em vida que marcam suas trajetórias.
Os (as) negros (as) então são sujeitos (as) que não são detentores de respeito e merecedores de proteção do Estado. Esse fato resta evidente ao observar que a política contemporânea é baseada em um poder de ditar quem vai viver e quem vai morrer, em uma necropolítica em que os corpos negros estão submetidos ao mundo da morte, a “viver na dor”, conforme lecionou o professor camaronês Achille Mbembe.
Estes (as) sujeitos (as) racializados (as) estão à mercê do rigor da vida e das provações, do julgamento por morte, marcados pelo excesso, pelo terror que, segundo Achille Mbembe, é uma característica que define tanto os Estados escravistas quanto os regimes coloniais contemporâneos, como instâncias e experiências específicas de ausência de liberdade.
Entendo que os pesquisadores (as) da área do Direito têm o dever de denunciar o racismo epistêmico em todas as esferas jurídicas, desnudando o projeto genocida em que o Estado se volta contra o seu próprio povo, nas lições do Professor da UnB Rodrigo Portela, em que compõe desde uma política criminal violenta, passando pelo não acesso a direitos sociais básicos, a exemplo da saúde, da educação e do trabalho. É crucial revelar que o Estado atua como corresponsável em relação a essa política de morte, que propicia condições de não cidadania ou de subcidadania, ao observar o protagonismo estatal nas cenas de extermínio.
Nessa toada, trato de tragédias recentes, a exemplo de mais 500 mil pessoas mortas por omissão do Estado, sendo que, em conformidade com estudos do Núcleo de Operações e Inteligência e Saúde da PUC-Rio e do Instituto Pólis, 55 % dos mortos por COVID-19 são negros, e apenas 38% são brancos. Uma pandemia de um vírus contra o qual já existe vacina comprovadamente eficaz, negligenciada pelo chefe do Poder Executivo Federal.
Da mesma forma, trato da “bala perdida” que acertou o tórax de uma moça negra de 24 anos (Kathlen Romeu), designer de interiores, grávida do primeiro (a) filho (a), morta durante uma operação da Polícia Militar do Rio de Janeiro, em uma comunidade localizada na região da Autoestrada de Grajaú-Jacarepaguá, em oito de junho desde ano. Trato, dentre outros, da chacina da favela do Jacarezinho, no Rio de Janeiro que, durante uma operação da Polícia Civil, resultou em pelo menos 29 pessoas mortas em seis de maio deste ano.
São ataques às favelas, aos “quilombos urbanos”, que possuem alvos certos: pessoas negras, pobres, faveladas, condenadas à dor e à morte, pertencentes à zona de desumanização e à invisibilização permanente. Nessa conjuntura, questiona-se: como resistir a todo esse processo de aniquilamento das pessoas negras capitaneado pelo próprio Estado? Quais as estratégias que se deve utilizar para dar uma solução possível para que haja, de fato, uma democratização?
De acordo com o que afirmou a professora canadense Adelle Blackett, precisamos formar uma coalisão de resistências entre pessoas que se situam fora do privilégio da branquitude. Ademais, é mister que todos (as) saiamos de nossas torres de marfim para participar de um esforço coletivo de reconstrução, de reestruturação das ordens social, jurídica e política, considerando as tensões raciais (também de gênero, apesar de este assunto não ser o escopo deste artigo).Precisamos, então, viver a política, que é diferente de ser abstratamente a favor dela, conforme afirmou o sociólogo jamaicano Stuart Hall.
Longe de apresentar respostas reducionistas e rígidas, este artigo tem por escopo oferecer perguntas inquietantes e arriscadas, sem uma resposta estanque. Somos convidados a refletir sobre os processos complexos que gravitam sobre o racismo institucionalizado, processos dialéticos que ocorrem entre a resistência e a aceitação do status quo. O propósito é pensar o paradigma jurídico por um prisma contra-hegemônico e crítico, que observa o avesso dessa organização jurídica atual sob a ótica do colonialismo e das teorias étnico-raciais.
Em conformidade com Elza Soares, que completou 91 anos em 23 de junho, “a carne mais barata do mercado é a carne negra, que vai de graça para o presídio e para debaixo do plástico, e vai de graça pro subemprego, e pros hospitais psiquiátricos, só cego não vê”. Portanto, tentamos jogar luzes para a realidade invisibilizada dos negros em um sistema político-jurídico no qual o racismo é estrutural e institucionalizado. Logo, é necessário enfrentar o apagamento das ideias de raça e de racismo que permeia a cultura jurídica e a cultura política transnacional.
*Emanuele de Fátima Rubim Costa Silva é advogada, especialista em Direito do Trabalho, pesquisadora do grupo de pesquisa “Novas formas de trabalho, velhas práticas trabalhistas”, vinculado à UFPA, certificado na plataforma CNPQ
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