Sobre a mulher
Já fui mulher eu sei, já fui mulher eu sei… Assim diz a canção de nosso querido Chico César. Acredito que para um homem falar ou escrever sobre a mulher, antes é preciso se despir de toda sua visão particular do masculino e pensar não como uma mulher, mas como se fora. Tarefa impossível. Isso porque o universo feminino contém infinitos outros universos, tão complexos e impenetráveis para nós, homens. Ouso escrever sobre elas no dia delas, mas alertando que aqui trago apenas lampejos de um homem que as admira, que as ama, que tenta compreendê-las, sem, no entanto, compreendê-las nunca.
A mulher quase sempre foi vista de forma pejorativa e preconceituosa, ora como castigo e tentação, ora como santa, ora como bruxa, ora como o ser frágil, ora como propriedade, mas nunca como mulher, dotada dos mesmos atributos e direitos. Quase sempre vista sob o olhar masculino, definidor do espaço feminino e não vista por si mesma e capaz de definir o seu próprio espaço. Assim foi com Eva, a primeira. Considerada a mulher que trouxe os males para o mundo, que levou Adão a desobedecer a Deus e por isso até hoje sofremos as consequências do pecado original. Da mesma forma, com Pandora, da mitologia grega. Zeus a enviou para punir os homens pela audácia de Prometeu de ter roubado o fogo do Olimpo. Ela é kalon kikon, do grego, belo infortúnio, bela e ruim, belo demônio. A caixa de Pandora uma vez aberta trouxe tudo de ruim para os homens, fome, guerra, doenças.
Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas… Elas não tinham vontade, nem gosto nem qualidade, medo apenas, diz a bela canção de Chico Buarque. As mulheres não podiam participar da política, nem opinar nos assuntos públicos, não eram cidadãs, restava apenas procriar para dar soldados ao governo. Não tinham opção, eram propriedades. Contudo, vez ou outra apareciam as que não aceitavam a submissão. Na peça de Aristófanes, Lisístrata é a mulher que lidera uma greve de sexo contra os homens, até que seus maridos parem a guerra fratricida entre Atenas e Esparta, celebrando a paz. Hipatia, nascida em Alexandria, 370 d. C, era cientista, matemática, filósofa, médica, astrônoma e professora. Ela conseguia mover-se livre e desinibidamente por domínios tradicionalmente masculinos. Mais ainda, segundo os relatos, tinha grande beleza e, embora tivesse muitos pretendentes, nunca se interessou por casamento. Era desprezada pela igreja da época, em particular pelo bispo Cirilo, por considerá-la como um símbolo do aprendizado e da ciência, ou seja, uma pagã. Mesmo correndo perigo, continuou com suas atividades até que em 415 d. C ela foi atacada por uma multidão fanática, rasgaram suas roupas e arrancaram a carne de seus ossos. Seus restos mortais foram queimados, seus trabalhos destruídos, seu nome esquecido. Cirilo, feito santo. Não podiam tolerar uma mulher que pensava por conta própria.
Em A arte da sedução, Robert Greene afirma que no início da civilização todas as coisas eram conquistadas pelo uso da violência e mantidas pela força bruta. Havia pouco espaço para as mulheres nesse mundo de guerras, elas não tinham armas para competir com os homens. Todavia, os homens tinham uma fragilidade: o desejo incontrolável por sexo. Nesse terreno, elas podiam jogar, mas no momento em que cediam, os homens novamente assumiam o controle; e, se negassem, eles iam procurar em outro lugar, ou tomavam à força.
Eis que surgem mulheres que procuraram inverter essa dinâmica, criando uma forma mais sofisticada e permanente de poder. Betsabá, Helena de Tróia, Hsi Shih e a maior de todas, Cleópatra – inventaram a sedução.
Continua o citado autor a afirmar que elas pintavam o rosto e se enfeitavam, parecendo verdadeiras deusas. Deixavam entrever apenas um pedacinho do corpo, excitando a imaginação do homem, estimulando o desejo não só de sexo, mas de algo muito maior: a possibilidade de possuir uma figura da fantasia. Assim, os homens eram fisgados pelo mundo feminino, esquecendo os problemas, a política, as guerras, eles se apaixonavam. Nesse momento, as mulheres se mostravam frias, indiferentes, confundindo suas vítimas. Logo que os homens mais queriam, esses prazeres lhes eram negados. Eles eram obrigados a perseguir, a tentar qualquer coisa para reconquistar os favores e, nesse processo, iam ficando mais fracos e emotivos. Pronto: o jogo estava equilibrado. Seduzindo, a mulher não era mais um objeto sexual passivo, ela se tornava um agente ativo, uma figura de poder. Poucos homens compreenderam a nova arte, com raras exceções, como o poeta latino Ovídio, os trovadores medievais, a lenda de Dom Juan e Casanova.
Betsabá, do Antigo Testamento, com sua beleza, deixou o Rei Davi enlouquecido, cometendo, segundo o relato bíblico, uma série de transgressões contra Deus. Primeiro tomando-a como sua e depois, mandando o marido dela, o general Urias, para a morte no batalhão de frente da guerra contra os Amonitas.
Helena, que era tida como a mulher mais bela do mundo, seduziu o príncipe de Tróia, Páris, que a raptou, o que viria a causar uma guerra de dez anos, com a total destruição dos troianos.
Hsi Shih, a sereia chinesa, foi enviada pelo rei Kou Chien para se vingar do rival, Fu Chai. Segundo a lenda, sua beleza era inebriante, que ao olhar os peixes na lagoa, eles ficaram tão deslumbrados que se esqueceram de nadar. Em pouco tempo Fu Chai estava dominado pela mulher, esquecendo os assuntos da corte, não comparecendo mais às reuniões, não se preocupando com a guerra. Ela pediu um palácio e ele construiu. Passava o dia inteiro vendo Hsi Shih pentear os cabelos. Quando deu por si, seu reino estava falido e invadido pelo exército de Kou Chien.
Cleópatra, para se tornar rainha do Egito, seduziu os homens mais poderosos do mundo de então. Diz a História que Cleópatra mandou entregar um tapete a Júlio César, o ditador romano. Quando foi desenrolado, lá estava ela seminua, tão atraente quanto à deusa Vênus surgindo das ondas. Em poucas horas, se tornaram amantes e César, com o tempo, se livrou de todos os rivais da jovem rainha. Depois do assassinato de César, o destino de Marco Antônio, grande general romano, não foi diferente. Marco Antônio se viu enfeitiçado por Cleópatra, se mudou para o Egito, abandonando os hábitos romanos. Esse romance acabou levando a uma guerra civil pela disputa de quem seria o primeiro imperador de Roma, culminando com sua derrota para Otávio e suicídio junto com sua amada.
Fazendo um salto histórico, a mulher não é só beleza, sedução, encanto e reprodução. A mulher é tudo isso e inteligência, competência, dedicação, sacrifício, resistência à opressão, luta e… muito mistério, é claro! O mundo mudou, avançou em tecnologias, aumentou a longevidade, mas a mulher continua sujeira à violência diária, ao assédio e à misoginia, a sociedade ainda é patriarcal e falocêntrica. Segundo dados oficiais, a cada quinze segundos uma mulher é espancada no Brasil. Preocupante.
Todavia, como disse antes, sempre há aquelas dotadas de espírito questionador, que não se subjugam, que reivindicam transformações nas liberdades individuais ao mesmo tempo respeitando a coletividade. Daí vem um segundo momento de equilíbrio na relação masculino-feminino, muito mais avançado e revolucionário que a simples sedução: o feminismo. O feminismo traz uma nova ética, consistente em que entre homens e mulheres, entre pessoas singulares deve existir respeito e igualdade. Historicamente, todos os avanços sociais referentes às conquistas da mulher estão relacionados ao feminismo. O direito a ter uma profissão que não seja cuidar da casa, o direito à escolaridade, o direito ao divórcio, o direito ao voto, todos são tributários das lutas feministas.
No livro Eva e os padres, ambientado na época da inquisição medieval, há o relato de que um homem chamado Gervais de Tilbury encontra uma moça passeando e lhe propõe algo lascivo. Ela recusa. Ele não aceita que a moça resista a alguém tão atraente. Ela não é normal, é uma herética, pensava ele. E por ser um membro poderoso da igreja, denuncia-a, que é presa, condenada e queimada na fogueira. Essa é a lógica do estupro, assustadoramente atual. A culpa é da vítima. Quem manda se vestir dessa forma? Por que não estava na escola?
Durante a Revolução Francesa, o grande movimento que reivindicava as liberdades individuais e pretendia derrubar a tirania, lançando a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, Olímpia de Gouges lança a Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã. Os homens não aceitaram esse debate e ela acabou sendo morta na guilhotina. Muita contradição, uma revolução contra o arbítrio, assassinar uma mulher que lutava contra a opressão. Revolução era coisa de e para homens.
Em 1949, Simone de Beauvoir publica O Segundo sexo, livro que iria revolucionar a luta das mulheres e dar uma visão altamente emancipatória, causando um verdadeiro abalo no mundo. A ideia central da obra é a de que não há justificativas de que a mulher seja inferior ao homem, fazendo uso dos mais variados conhecimentos para comprovar sua afirmação, com argumentos no campo biológico, social, psicanalítico, filosófico, mitológico e histórico. É um convite à mulher a viver a plenitude de sua liberdade.
Betty Friedan lança A mística feminina em 1963. O livro sacudiu a América. A autora compara a vida da mulher, reclusa como dona de casa, aos campos de concentração nazista, numa crítica ácida à cultura machista, que reduz a mulher ao papel de mãe, de cuidadora do lar, vivendo para os outros e nunca para si mesma. A mulher não vive, cumpre um papel. Friedan veio como uma voz poderosa na luta pelos direitos das mulheres e mudanças nas leis opressivas.
Por conta da luta de muitas mulheres e a inserção da mão de obra feminina no mercado de trabalho, foi instituído o Dia Internacional da Mulher. As celebrações iniciaram a partir de 1909 nos Estados Unidos, por iniciativa do Partido Socialista da América, em memória do protesto das operárias da indústria contra as más condições de trabalho. As comemorações seguem até hoje e sempre seguidas de marchas, protestos e afirmações de direitos e conquistas.
No Brasil, Nísia Floresta, considerada pioneira no feminismo por aqui, Berta Lutz, Mietta Santiago e outras foram fundamentais pelo direito ao voto em 1933, pela escolha do domicílio e pelo trabalho sem autorização do marido.
Quanto à violência, somente em 2006 foi sancionada uma lei para proteger as mulheres, depois que o Brasil foi vergonhosamente condenado na Comissão Interamericana de Direitos Humanos dos Estados Americanos (OEA) devido à luta de Maria da Penha para punir o seu agressor, que tentou matá-la duas vezes. Na primeira, atirou simulando um assalto, na segunda tentou eletrocutá-la. Por conta das agressões sofridas, ela focou paraplégica.
Já com saudade dessas linhas e que esse dia seja não só hoje, mas que siga todos os dias, todas as horas, como uma chama viva a alimentar a igualdade de gênero, tenho a dizer que, como homem, me questiono, diuturnamente, se meu comportamento de cavalheiro como colocar a mulher do lado da calçada e eu do lado do trânsito, de abrir a porta do carro, de sempre querer pagar a conta não seria uma forma inconsciente de machismo. Tão frágil que eu preciso protegê-la! Sem força que preciso abrir a porta, sem capacidade de ter um trabalho melhor que o meu que tenho que pagar a conta etc. Obviamente que, se estiver chovendo e o guarda-chuva só couber uma pessoa, vou ceder a ela, não porque é frágil a ponto de contrair uma doença, mas porque eu gosto tanto dela que prefiro eu mesmo me sacrificar. Alerto, porém, que sempre devemos nos policiar quanto a alguma atitude, mesmo que mínima, de machismo, até porque a cultura da superioridade masculina está tão arraigada e o preconceito contra a mulher talvez seja o mais permanente e profundo de todos os preconceitos humanos, que é possível, despercebidamente, nos flagrarmos cometendo uma atitude machista.
Enfim, mulher é para ser amada, respeitada e ter iguais direitos. Razão tem Zé Ramalho quanto canta: Quem não ama o sorriso feminino desconhece a poesia de Cervantes…Se não fosse a mulher, mimosa flor, a História seria mentirosa. E como a História seria mentirosa! Viva a mulher e o seu dia, viva a mulher todos os dias!
Joaquim Neto Gonçalves
Analista Judiciário do Tribunal de Justiça do Maranhão
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