Sem concorrentes, duas empresas prestam serviços questionáveis aos Detrans
Quando o publicitário José Arnaldo Suaid, de 31 anos, comprou seu Volkswagen Fox financiado em São Paulo, pagou tantas taxas que nem se lembra mais do total. Entre elas, estava a taxa de registro do contrato de financiamento, de R$ 55. “Isso é como um couvert, eles vão colocando e não te informam, nem perguntam nada. É uma maluquice. Todo mundo ganha, só não ganha quem está comprando o carro.”
Suaid está certo. Muitos ganham, menos o consumidor. Ganham especialmente duas empresas, que dominam o mercado de registro de carros financiados no Brasil. Só no ano passado elas faturaram R$ 200 milhões, que saíram do bolso de proprietários de veículos. Elas são suspeitas de favorecimento, atuam sem concorrência ou com licitações em que só aparece um interessado. O serviço dessas empresas é informar os Detrans que o carro é financiado. Por essa intermediação, recebem até 90% do valor da taxa paga pelos consumidores – um trabalho que em Estados como o Piauí nem é considerado necessário. Em Brasília, é feito pelo próprio Detran, que fica com toda a arrecadação.
A GRV Solutions atua em dez Estados, entre eles São Paulo e Minas Gerais. Jamais participou de uma concorrência. Entrou nesse filão com a bênção da Federação Nacional de Seguros (Fenaseg), que fez um convênio com dez Detrans e contratou a GRV sem licitação. Quando o contrato foi assinado, o sócio majoritário da GRV era João Carlos Ribeiro, amigo e ex-sócio do então presidente da Fenaseg, João Elísio Ferraz de Campos. Só no ano passado, a dupla GRV/Fenaseg faturou pelo menos R$ 130 milhões.
Ferraz de Campos não vê problemas no contrato. “João só era meu sócio em dois negócios. É meu amigo de infância.” Governador do Paraná na década de 1980, ele coordenou a vitoriosa campanha de Beto Richa (PSDB) ao governo paranaense em 2010. Seu Estado foi o primeiro a aderir ao sistema de registros da GRV/Fenaseg. Ferraz de Campos não é mais presidente da Fenaseg, mas o contrato com a GRV vai até 2028. Se a entidade resolver rescindir, terá de pagar R$ 2 bilhões.
O advogado Jonas Lima, especialista em licitações, diz que convênios como o da Fenaseg com os Detrans podem ser feitos sem licitação para “cooperação mútua”. Nesse caso, o convênio, em si, é legal. Mas a contratação de uma empresa pela Fenaseg para fazer o serviço não é. Segundo Lima, a lei de licitações prevê que empresas contratadas pelo convênio também passem por concorrência. A relação entre Fenaseg e Detrans é estreita. Segundo vários diretores de Detrans estaduais, que preferiram não se identificar, todas as reuniões da Associação Nacional dos Detrans (AND) eram bancadas pela Fenaseg. “Ela pagava estadia, passagem, tudo para os diretores”, disse um deles.
A segunda maior empresa do mercado, a Fidúcia, atua em cinco Estados. Em quatro deles, já enfrentou ações judiciais. À exceção de Mato Grosso, jamais teve um concorrente nas licitações – a empresa diz que as outras empresas não apresentaram propostas. A Fidúcia reclama da atuação da GRV e alega ter sido expulsa várias vezes de eventos com presidentes de Detrans quando tentava mostrar seu serviço. Seria o trabalho muito complexo e por isso repassado a essas empresas? O Departamento de Trânsito do Distrito Federal não considera a tarefa das mais árduas. “É muito simples, qualquer Detran pode fazer. Basta acrescentar um item a mais no formulário”, diz o diretor presidente José Alves Bezerra sobre o software que leva os dados dos bancos até os Detrans. O órgão contratou uma empresa para desenvolver o sistema e fica com o valor pago pelos motoristas. Por mês, recebe em média R$ 2,5 milhões.
Bezerra afirma que já foi assediado para privatizar o sistema. A empresa que o procurou (ele não revela qual) propôs que o Detran propositadamente começasse a fazer o serviço piorar. “Eles queriam que eu bagunçasse para justificar a contratação. Me ofereceram R$ 50 mil por mês.”
O exemplo do Piauí mostra que o serviço nem precisaria necessariamente ser feito. O Estado cancelou seu contrato com a Fidúcia no começo deste ano. O novo governo estadual considerou que o acerto lesava o Detran, já que a Fidúcia ficava com 80% dos R$ 250 que cobrava por registro, e o Estado com apenas R$ 50. As negociações prosseguem, e a empresa já aceita dar 30% para o Piauí, que quer metade do bolo. Enquanto isso, o Piauí simplesmente não registra os contratos. “Não estamos fazendo o registro há meses, e ninguém me procurou para reclamar de nada. Nem consumidores, nem instituições financeiras, nem o Ministério Público. Só a Fidúcia me procura”, diz José Vasconcelos, diretor do Detran-PI. O Detran piauiense estuda fazer o registro sozinho, como o de Brasília, de forma gratuita. A Fidúcia também é contestada em Alagoas, onde continua atuando após um termo de ajuste de conduta.
O espaço para as empresas atuarem surgiu em 2002. Até então o registro era feito em cartórios. O artigo 1.361, da Lei no 10.406, que instituiu o Novo Código Civil, tinha redação dúbia e dava a entender que o registro de contrato de um veículo financiado poderia também ser realizado em Detrans. Duas resoluções do Conselho Nacional de Trânsito (Contran) entregaram a responsabilidade aos Detrans em definitivo. Alegando falta de pessoal ou tecnologia para fazer o serviço, eles terceirizaram. Os cartórios ainda atuam no Rio de Janeiro, no Ceará e em Goiás, graças a liminares na Justiça.
Em teoria, outras empresas poderiam atuar ao mesmo tempo. Mas isso não acontece em nenhum dos Estados em que o dueto atua. A ICE, empresa de informática, já procurou diretores de Detrans de pequenos Estados do Nordeste oferecendo o serviço até de graça, para adquirir know-how e poder se aventurar em licitações em Estados maiores. Nem assim conseguiu. O ramo, ao que parece, é para poucos.
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