Roseana e a festa da impunidade
Já era meia-noite e meia quando os versos de “Falador Passa Mal”, na versão cantada por Jorge Ben Jor escolhida pelo DJ, ecoaram pelos salões do Palácio Xabregas, em Lisboa, espaço suntuoso alugado pelo criminalista Antonio Carlos de Almeida Castro, conhecido como Kakay, para celebrar seus 60 anos em terras portuguesas, na noite de sexta-feira (22).
“Que malandro é você?/ Que não sabe o que diz/ Cuidado que muita mentira, você pode perder o nariz!”
“É o melô do delator”, definiu um jovem advogado, enquanto repetia o refrão: “Falador passa mal, rapaz”, uma ode que cabe bem na boca de críticos da delação premiada.
O benefício, previsto na legislação brasileira desde 2013 e combustível para a cruzada anticorrupção no país, passa por uma prova de fogo após ter sido concedido a Joesley e Wesley Batista, donos da JBS e clientes do aniversariante.
Os irmãos delatores que haviam saído ilesos após a espetacular “delação do fim do mundo”, com direito até a grampear o presidente Michel Temer, agora “passam mal” desde a prisão ordenada pelo STF.
Na tentativa de desfazer a reviravolta entrou em cena Kakay, um dos personagens mais famosos da crônica jurídico-policial-política do país ao longo das últimas décadas.
Um dia antes de comemorar a chegada dos 60 em Lisboa, o advogado subiu à tribuna do STJ (Superior Tribunal de Justiça) para sustentação oral do pedido de liberdade dos Batista.
A audiência às vésperas da festança custou ao defensor um bate e volta Lisboa-Brasília-Lisboa em jatinho particular. Ossos de um ofício mais do que bem remunerado. A viagem de última hora interrompeu por 24 horas a intensa programação dos festejos ao longo da semana passada na terrinha.
Um dos pontos altos foi o show privé de Carminho, a mais famosa cantora de fado da nova geração, cujo cachê não sai por menos de 20 mil euros (R$ 75 mil).
A apresentação foi seguida de jantar que teve como prato principal bacalhau meia cura braseado, cebola caramelizada com balsâmico, purê de batata e ervilha torta salteada.
A cantora portuguesa brindou os convidados com fados tradicionais e também com “Sabiá”, de Tom Jobim. Mas o hit da noite foi mesmo “Falador Passa Mal, a canção do Originais do Samba. “É nossa homenagem ao Janot e ao Moro”, divertiu-se duplamente o dono da festa, ao lado da mulher, Valéria Vieira, 56, no salão convertido em pista de dança depois da meia-noite.
Nem sequer convidados, o juiz Sergio Moro, protagonista-mor da Operação Lava Jato, e o ex-procurador-geral Rodrigo Janot, titular do posto de acusador-mor da República até 17 de setembro, eram onipresentes nas rodinhas de conversas em torno de criminalistas, grupo mais numeroso entre os 220 convidados.
“Só fiz a festa em Portugal porque não pude fazer em casa. O Brasil virou um país punitivo, esquisito”, diz Kakay. “Quando fiz 50 anos, convidei todos os amigos, gente do Executivo, do Legislativo, do Judiciário. Tinha vários senadores, governadores, ministros de tribunais superiores, ex-presidente. Hoje não dá para fazer isso.”
Do universo político, a ex-governadora Roseana Sarney foi estrela solitária no Palácio Xabregas, ao lado do marido, Jorge Murad. Kakay foi advogado de Roseana no episódio da apreensão de R$ 1 milhão no escritório da pré-candidata à Presidência da República em 2002. Outro nome conhecido que viajou a Lisboa para prestigiar Kakay foi o consultor de imagem Mario Rosa, autor de “Entre a Glória e a Vergonha”, livro em que narra a experiência como investigado na Operação Acrônimo.
“Com a espetacularização das denúncias, os criminalistas viraram celebridades. E o Kakay é o mais célebre deles”, define Rosa.
Além de políticos e empresários encrencados em escândalos nacionais, o aniversariante advogou para o cantor Roberto Carlos e a atriz Carolina Dieckmann.
POSTERIDADE
Cruzaram o Atlântico para cantar parabéns a Kakay nomes que os brasileiros já se acostumaram a ver no horário nobre da TV como defensores de protagonistas de sucessivos escândalos nacionais – do mensalão à Lava Jato.
Kakay fez questão de reunir para uma foto 18 colegas, entre eles estrelas de algumas das bancas mais prestigiosas e caras do Brasil: Alberto Toron, um dos mais requisitados na área de crimes financeiros, que tem o senador Aécio Neves na Lava Jato; Marcelo Leonardo, defensor do publicitário Marcos Valério no mensalão; e Roberto Podval, um dos advogados do ex-ministro José Dirceu.
Todos amigos de longa data. “Vim celebrar uma amizade de 30 anos”, disse Toron. Nesta terça-feira (26), o advogado terá audiência em Brasília no caso em que Aécio, em gravação feita por Joesley, pede R$ 2 milhões ao empresário alegando necessitar de dinheiro para sua defesa.
Na festa espalhada por três ambientes do palácio do século 16 e que pertence aos herdeiros do Marquês de Olhão, o Judiciário estava representado por duas juízas federais: Fátima Costa, recém-aposentada da 10ª Vara Federal do DF, onde correm processos contra o ex-presidente Lula; e Candice Galvão Jobim, atualmente na corregedoria do Conselho Nacional de Justiça.
Filha de Ilmar Galvão, ex-ministro do STF, Candice é casada com Alexandre Jobim, herdeiro de Nelson Jobim, ex-ministro do Justiça. O casal dividiu mesa com Monica Oliveira, mulher do presidente do Senado, Eunício Oliveira (PMDB-CE). Ex-colega de faculdade de Kakay, ela viajou sem o marido e já estava em Lisboa para comemorar os 80 anos da mãe, que foi embaixatriz brasileira em Portugal.
“Nosso país hoje não permite comemorações. Muitos clientes estão presos, é difícil separar o pessoal do profissional”, lamentava Podval.
Para ele, seria natural ter colegas de outras áreas do direito em eventos sociais como o de Kakay, assim como no seu casamento, realizado na ilha de Capri, na Itália, quando a presença do ministro do STF Dias Toffoli foi considerada escandalosa.
“Nossos amigos são promotores, juízes, ministros, pessoas com as quais temos relações de vida. Mas essa convivência passou a ser mal vista. Parte-se da premissa de que tudo é mal intencionado.”
“Seria um escândalo ter um ministro de tribunal superior aqui nesta festa hoje”, concorda Marcelo Leonardo, avaliação repetida por outros convidados de Kakay.
Pelo menos dois deles esbarraram naquela tarde com Janot, que chegara a Lisboa no dia anterior no mesmo voo em que viajava o ministro Gilmar Mendes, seu desafeto.
No dia seguinte, a festa de Kakay continuou com um almoço na vinícola Adega Mãe, em Torre Vedras, a 60 km da capital portuguesa.
A mesa farta de frutos do mar, recheada de camarões e lagostas, ocupava o centro do salão. Pratos frios e quentes eram acompanhados de vinhos, espumantes e licores portugueses.
A degustação premiada aconteceu em um cenário deslumbrante, com vista para as videiras e uma plantação de lavanda, em um temperatura agradável de começo de outono.
No meio da tarde, os doutores da Lava Jato soltaram a voz, embalados pelos acordes de Di Brasil, músico vindo de Brasília especialmente para animar o encontro vespertino.
“Foi uma surpresa para o aniversariante. Estou em todas as festas dele em Brasília”, conta Di Brasil, que fez dupla com Kakay em “Evidências”, de Chitãozinho e Xororó, um clássico nas festanças do advogado em todas as latitudes.
O anfitrião ainda declamou poemas e fez um discurso emocionado na hora de apagar as velas. “Como diz Fernando Pessoa, tudo vale a pena quando a alma não é pequena. Na terra do poeta, eu pratiquei o socialismo das ideias e dos afetos. Bem-vindos ao meu delírio.” (Folha de SP)
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