Preço do arroz não pode fazer país retroceder à época dos fiscais de Sarney
Talvez poucos se lembrem do que foi o período de hiperinflação no Brasil. Possivelmente os mais novos não conseguem imaginar o que foi o processo de remarcações diárias dos preços nos supermercados. As pessoas recebiam o salário e corriam para as lojas para fazerem compras mensais. A economia, como um todo, ficava totalmente desajustada e os mais pobres, que não tinham contas bancárias e a possibilidade de fazer aplicações indexadas, eram os que mais perdiam. No final do governo Sarney, a inflação já estava em 84,3% ao mês e com uma taxa acumulada nos 12 meses anteriores de 4.853,90%. Isso apesar dos quatro planos econômicos empreendidos (Cruzado, Cruzado 2, Bresser e Verão), das mudanças de moedas e das várias tentativas de tabelamento de preço.
Durante este período, foram cometidos todos os tipos de erros na economia. Alguns empresários de setores oligopolísticos eram chamados a Brasília para discutir preço com o extinto Conselho Interministerial de Preços (CIP), em um movimento que se assemelhava muito a um processo de cartelização patrocinado pelo governo federal. Outros empresários, que atuavam no varejo, eram chamados e colocados em uma sala para dar explicações sobre aumento de preços. Neste processo, além de tomarem “pitos professorais” da equipe de Sarney, sofriam ainda ameaças veladas.
Foi exatamente neste período que, mais de uma vez, o governo resolveu tabelar preços e colocar o exército de fiscais da “falecida” Superintendência Nacional de Abastecimento (Sunab) para saírem atrás daqueles estabelecimentos que praticassem preços acima da famosa tabela de preços definida pelo órgão. Com o descontrole eminente, o governo apelou ainda para que a população também fiscalizasse os preços praticados e denunciasse aqueles que estivessem acima dos definidos na tabela da Sunab. Por óbvio, os preços não refletiam as condições de mercado e os produtos sumiam das prateleiras, a exemplo do que tem ocorrido hoje na Argentina e já há alguns anos na Venezuela.
Assistimos naquela época a todo tipo de cenas patéticas. Desde um cidadão gritando na porta de um supermercado que fecharia a loja em nome do presidente Sarney, até mesmo o então governador de São Paulo, Orestes Quércia, se fantasiar de “Rei do Gado” para buscar boi magro no pasto de uma fazenda, em um claro sinal de confisco de propriedade privada. Foi um período de caça aos empresários, sendo que a verdadeira responsabilidade do problema estava no próprio governo, no total descontrole das contas públicas.
Hoje, o que mais me preocupa é que algumas pessoas parecem não ter ideia do que foram aqueles anos. Começando pelo próprio presidente Bolsonaro, que dá uma declaração apelando para uma espécie de “patriotismo de preços”. Há também aqueles que já se anteciparam e se apresentaram como vanguardistas do atraso, colocando os “neofiscais da Sunab” para fiscalizar e multar o que consideram preço abusivo. Vários Procons pelo país afora estão colocando seu corpo técnico em ação para isso.
O atual governador em exercício do Rio de Janeiro, Claudio Castro, por exemplo, postou em uma rede social que os agentes do Procon-RJ autuariam supermercados pela prática de preço abusivo. Em São Paulo, o Secretário de Defesa do Consumidor, Fernando Capez, aparentemente instituiu um modelo regulatório de “preço teto” para o arroz, ao não admitir nada superior a R$ 40 pelo saco de 5 Kg. E isso em um mercado competitivo, ignorando por completo o princípio constitucional da livre iniciativa e a lei de liberdade econômica.
Recentemente, a Associação Brasileira dos Procons (ProconsBrasil), a Associação Nacional do Ministério Público de Defesa do Consumidor (MPCON) e a Comissão Especial de Defesa do Consumidor da OAB Nacional protocolaram ofício no Ministério da Justiça pedindo informações sobre a cadeia produtiva de alimentos e cobrando ações por parte do governo para conter as elevações de preços de produtos da cesta básica. Contraditoriamente, ao mesmo tempo em que as três entidades dizem não pretender controlar preços, propõem que sejam coibidos o que consideram preços abusivos.
Não desconheço as figuras jurídicas contidas no inciso X, do artigo 39 do Código de Defesa do Consumidor (elevação de preços sem justa causa), e muito menos no parágrafo § 4º do artigo 173 da Constituição Federal (aumento arbitrário de lucro). Entretanto, essas figuras, por si só, além de não dizerem nada sob o ponto de vista econômico, quando utilizadas de maneira equivocada podem gerar efeito semelhante ao de um revólver na mão de um macaco. Preços que não representam os condicionantes de mercado desestimulam investimentos futuros e o aumento de áreas plantadas, criando, aí sim, um desabastecimento em anos subsequentes e desajustes nas cadeias produtivas.
Afinal, quem é que define o que é lucro razoável para uma dada empresa? Qual o risco do setor que deve ser considerado nesta conta? No caso de elevação injustificada de preços, quais são os fatores de demanda e de oferta que devem ser considerados para cada mercado? Quais as fontes utilizadas? Como lidar com empresas que vendem vários produtos? Mesmo as agências reguladoras, que lidam fundamentalmente com monopólios naturais, têm dificuldade em escolher a tarifa que ao mesmo tempo cumpra a dupla missão de garantir a modicidade tarifária e o retorno adequado ao investidor. Fico imaginando um grupo de burocratas definindo quais preços são abusivos e quais deveriam vigorar no mercado.
É provável que exatamente pelo medo do “populismo consumerista” tomar força neste ano de pandemia, tenha sido elaborada um documento conjunto dos Ministérios da Justiça e da Economia (Nota Técnica no 8/2020/CGEMM/DPDC/SENACON/MJ) que procura dar um mínimo de racionalidade à análise do que seria um preço abusivo. Em realidade, sob a égide econômica, os tais “preços abusivos”, na melhor das hipóteses, derivam de condutas anticompetitivas (caso de cartéis ou de abuso de posição dominante) ou de atitudes enganosas de ofertantes, que impeçam que o consumidor avalie para si adequadamente o valor da mercadoria.
De toda forma, no meio deste novo ambiente de caça às bruxas criado, há um alento. Em declarações equilibradas, a atual Secretária Nacional de Defesa do Consumidor (Senacon), Juliana Domingues, tem deixado bem claro que não há a mínima chance de este governo implementar qualquer tipo de tabelamento de preços. Na mesma linha têm caminhado os técnicos do Ministério da Economia.
Fato é que as razões para as variações dos preços até o momento apontadas já são conhecidas e passam por mudanças nas variáveis de oferta e de demanda em mercados majoritariamente competitivos. Extrapolar essa discussão para a generalização de atitudes empresariais inconsequentes não contribui em nada. Melhor seria que os tais fiscais fossem utilizados para coletar informações locais sobre preços, disponibilizando-as para os consumidores. E, em nível mais agregado, constituir cartilha indicando eventuais possibilidade de substituições no consumo entre produtos. Por Cleveland Prates
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