A política sem guerra
Quem acompanhou a agonia e morte de Marisa Letícia Lula da Silva viu salientes dois lados da sociedade brasileira. De uma parte, a solidariedade. O viúvo foi confortado por correligionários, pela gente comum e mesmo por adversários políticos, aos quais abraçou sem restrições.
De outra parte, a incivilidade. Enquanto anônimos buzinavam na frente do Hospital Sírio-Libanês e xingavam Marisa Letícia nas redes sociais, o neurocirurgião Richam Faissal El Hossain Ellakkis e a reumatologista Gabriela Araújo Munhoz espargiam idêntica violência dentro do hospital. Contrariando o esperado da profissão, o médico desejou que a paciente ardesse no inferno: “daí o capeta abraça ela”, registrou no WhatsApp. A atitude repugna, mas não surpreende.
Os dois médicos comungam o perfil de parte dos manifestantes que foram às ruas de São Paulo em megaprotestos nos três últimos anos: têm alta escolarização e alta renda, são brancos, são jovens. E são intolerantes.
Numa das manifestações –provavelmente contra o Mais Médicos, programa que prometia universalizar o acesso à saúde–, uma mulher desse perfil se deixou fotografar com cartaz caçoando do dedo que o ex-presidente perdeu na prensa: “Lula, achamos seu dedo! Tá no *#!% do povo brasileiro!”.
A atitude dos médicos se alimenta do espírito que animou muitos manifestantes, desde os de 2013 até os que pediam o impeachment de Dilma. Nesses protestos se exigiu o bom funcionamento das políticas públicas, mas também se destilou ressentimento antipetista. Muito saudável que cidadãos cobrem governos, combatam a corrupção, defendam melhorias. E que tenham preferência partidária. O preocupante é que se exprimam pelos meios agora cotidianos: a intolerância, a desumanização e a defesa do extermínio do adversário.
É arriscado comparar conjunturas históricas, mas o mecanismo que opera na intolerância costuma ser constante. Ele se encarna exemplarmente num padrão de sociedade, alicerçado na escravidão, e num regime político, o fascismo. Em ambos, destitui-se certo grupo de pessoas de sua humanidade. O rebaixamento à animalidade permite, num caso, o uso indiscriminado do corpo do escravo por seu dono, no outro, o aniquilamento dos que –como o atestam filmes nazistas– nada mais seriam do que ratos.
O processo tem, pois, história longa. E costuma acabar mal. O extermínio moral precede e autoriza o extermínio físico do diferente.
Registros dessa política da destruição do adversário têm aparecido amiúde no noticiário brasileiro. Pouca dúvida resta, se resta alguma, sobre o protagonismo do ex-governador Sérgio Cabral e do empresário Eike Batista em episódios de corrupção. Os delitos demandam pena. Contudo, nenhuma lei autoriza humilhar presos pela exposição de seus corpos, como na escravidão, e raspar-lhes a cabeça, como faziam os fascistas. Aí a punição se converte em vingança.
O padrão grassa nos cárceres brasileiros. Longe das câmeras, multidão de pobres vive sem acesso a direitos básicos. Slogan eleitoral de Paulo Maluf sintetizou o motivo: bandidos não seriam membros da classe dos “humanos direitos”. Essa partição da humanidade em bons e maus, nós e eles, justifica ignorar, excluir e torturar os diferentes –em cor, sexualidade, credo religioso, tendência política etc. Tortura, aliás, defensável, segundo o novo indicado ao Supremo Tribunal Federal.
A parte da sociedade brasileira a que pertencem os médicos Gabriela e Richam opera nesse registro. Julga-se cidadã do andar acima, mais confortável com seus pets que com a “gentalha” que habita o térreo e da qual preferiria se livrar em definitivo.
Antípodas desse comportamento são os abraços dos ex-presidentes. Lula estreitou um por um todos os que foram se despedir de sua mulher, independentemente de posição social ou cargo. Políticos, aliás, tiveram que aguardar na fila, atrás da gente humilde. O ato reconhece que somos todos membros da mesma humanidade.
Com idêntica fraternidade, Fernando Henrique retribuiu, na morte de Marisa Letícia, o abraço que recebera de Lula quando do funeral de Ruth Cardoso.
Esses abraços talvez sejam a mensagem mais poderosa que os dois líderes de partidos rivais podem transmitir ao país: a política não é a guerra. É justamente sua evitação. É possível discordar, criticar, se opor, sem trucidar –moral ou fisicamente. O diferente pode ser um adversário, mas não precisa ser um inimigo. A tolerância é a base da democracia. O resto anda na borda de um abismo, o do totalitarismo e da barbárie. (Angela Alonso)
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