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‘O triste fim de uma utopia’

Caravana. Lula nas margens do Rio São Francisco: “partido da ética” prometia não roubar – Arquivo O Globo / Fernando Maia/12-7-1994

POR ZUENIR VENTURA

RIO – Com certeza esse não era o desfecho esperado por Lula quando disse para a então candidata: “Dilma, sua eleição será a realização final do meu governo”. Na verdade, é o final infeliz de uma história que começou tão bem. Ao ser fundado em fevereiro de 1980, numa assembleia no Colégio Sion, em São Paulo, o Partido dos Trabalhadores foi a luz no fim do túnel no momento em que o Brasil vivia os estertores da ditadura militar. Toda a energia social reprimida por mais de uma década passou a se manifestar em movimentos de afirmação popular nos anos de 1978/79. Foi quando as históricas greves do ABC paulista, que chegaram a realizar assembleias com mais de 100 mil operários, revelaram um novo sindicalismo, liderado por um fenômeno que estava surgindo sob a forma de um retirante nordestino, torneiro mecânico barbudo de apelido Lula.

“A classe operária vai ao paraíso” deixou de ser o título de um filme famoso de Elio Petri para ser visto como uma espécie de vaticínio, reforçado pela coincidência de que o operário do filme também tinha perdido um dedo na máquina da fábrica em que trabalhava. Os desiludidos com as organizações tradicionais que não conseguiam tirar os militares do poder embarcaram com esperança na promissora aventura. Entre os 128 que assinaram a ata inaugural estavam os socialistas Antonio Candido e Sérgio Buarque, o comunista Apolônio de Carvalho, os trotskistas Mario Pedrosa e Lélia Abramo, e os cristãos Paulo Freire e Plínio de Arruda Sampaio.

Em 1976, o Grupo Casa Grande, que promovia ousados debates ainda na vigência da censura, até sob ameaça de bombas, trouxe aquela novidade paulista ao Rio pela primeira vez para uma palestra. Era uma plateia de mais de mil estudantes e intelectuais, que ouviram embevecidos Lula criticar estudantes e intelectuais. Franco, errando na concordância, mas carismático, foi uma revelação.

No entanto, o resultado da primeira experiência eleitoral de Lula, em 1982, não correspondeu ao prestígio que adquirira como líder sindical. Ficou em quarto lugar na disputa pelo governo de SP. Só em 1986 recuperou-se, ao ser eleito o deputado mais votado do país. Mas em seguida vieram os revezes. Em 1989, perdeu as eleições presidenciais para Fernando Collor. Em 1994, foi derrotado no primeiro turno por FH, e o mesmo aconteceu em 1998. Só na quarta tentativa, em 2002, “a esperança venceu o medo”, e ele conseguiu chegar à Presidência com mais de 50 milhões de votos.

Voltei a me encontrar com Lula em 1993, quando cobri para o “JB” a sua primeira Caravana da Cidadania, que percorreu 54 cidades do Nordeste. Foi uma incrível experiência jornalística acompanhá-lo durante 24 dias por bolsões de miséria que não dispunham de progresso e cidadania, às vezes nem de água e comida. Assisti a cenas como a de sua entrada triunfal em Nova Canudos, acompanhada de uma chuva torrencial após três meses de seca inclemente. Escrevi então: “Velhos, jovens e crianças foram para a praça celebrar Lula e a chuva. Cantaram e dançaram pela dádiva divina. Houve até uma eucarística distribuição de pães aos sem-terra. No reino mítico de Conselheiro, Padim Ciço, Lampião e Glauber Rocha não existe acaso. Só milagre”. (Com razão, o dono do jornal me chamou de volta por eu “estar muito lulista”)

Não foi só por esse mergulho no Brasil profundo que admirei Lula, mas também porque o seu “partido da ética” prometia não roubar nem deixar roubar. E, durante um tempo, foi assim. Era um desafio encontrar em algum escândalo um membro do PT. Hoje, é não encontrar. Acho que a perda da inocência ocorreu em 2005, com o mensalão. Não por acaso, foi o ano em que Hélio Bicudo deixou o partido, ele mesmo, fundador e, após 36 anos, coautor do pedido de impeachment de Dilma. Antes ou depois dele, outros colegas abandonaram ou foram abandonados, todos desiludidos: Heloísa Helena, Marina Silva, Cristovam Buarque, Plínio de Arruda Sampaio, para só citar alguns.

A crítica mais corajosa ao PT, porém, partiu de quem não é dissidente e permanece nele até hoje. Em 2010, ao avaliar os 30 anos da sigla, o então chefe de gabinete do presidente Lula, Gilberto Carvalho, ressaltou os inegáveis avanços sociais, para em seguida lamentar o “assemelhamento” nos defeitos. “Até o vício da corrupção entrou em nosso partido”. Pela mesma razão, Tarso Genro propôs “refundá-lo”. Mas preferiram afundá-lo.

Em 2014, estourou o petrolão, um propinoduto cuja dimensão fez do mensalão um tímido ensaio. Ao ver agora a extensão da encrenca de Lula no STF e na Lava-Jato, com ameaça de prisão, sinto a tristeza dos que se lembram do tempo em que a única acusação contra ele era de atentado à gramática, por falar “menas” e cometer anacolutos nos discursos.

O PT e Lula podem não acabar. Mas a utopia que eles encarnaram, essa acabou. Melancolicamente.

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