Nos anos 1980, Rodrigo Janot e Gilmar Mendes tomavam cerveja juntos na Europa
Rodrigo Janot era procurador-geral da República em maio de 2017 quando entrou armado no prédio principal do Supremo Tribunal Federal (STF) com a intenção de matar o ministro Gilmar Mendes, por insinuações que ele supostamente fizera sobre sua filha.
O então chefe do Ministério Público Federal chegou a ver o ministro, porém desistiu no último segundo. O caso foi revelado nesta quinta-feira pelo ‘Estado’. Os hoje desafetos eram amigos nos anos 1980 e chegaram a tomar cerveja juntos na Europa.
Quatro jovens procuradores, três deles recém-aprovados em concurso, se encontram em uma bela manhã de sol em Colônia, na Alemanha, e resolvem passar o dia juntos. Durante um passeio de barco pelo Reno, entre um gole e outro de um barato vinho Riesling alemão, conversam sobre o Ministério Público, a Constituinte, a redemocratização. Tudo em clima de camaradagem. Uma foto, gasta pelo tempo, registra a alegria e data da confraternização: 20 de agosto de 1988.
Em 2017, quando a desavença entre os dois já era notória, Janot disse, em entrevista no 12º Congresso da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), em São Paulo, que todas as vezes em que teve de se dirigir “de uma maneira mais dura foi reagindo a uma agressão”.
Na mesma ocasião relatou que os dois tomaram posse no Ministério Público Federal no mesmo dia – 1º de outubro de 1984 – e que, nos anos 1980, durante o período de formação acadêmica de ambos, simultaneamente Janot foi para Itália e Gilmar para a Alemanha. “Lá a gente se frequentava, ele nunca veio à Itália, eu fui à Alemanha, nós saíamos, tomávamos cerveja. Nós éramos de um mesmo grupo e depois a vida foi encaminhando cada um para o seu lado. Eu não tenho nada contra ele, é da minha turma de concurso.”
A cena do quase assassinato está narrada, sem detalhes, no livro Nada Menos que Tudo (Editora Planeta), que será lançado na próxima semana. Gilmar e Janot viviam trocando críticas e indiretas em público: o ministro é crítico dos métodos utilizados pela força-tarefa da Operação Lava Jato, que foi comandada por Janot por quase quatro anos. Janot saiu do comando da Procuradoria-Geral da República (PGR) em 17 de setembro de 2017.
Em 2016, ambos usaram o trabalho do então juiz federal Sérgio Moro para se criticarem diretamente. Janot havia afirmado que os processos da Lava Jato têm ritmo “mais lento” por serem conduzidos por um tribunal, e não pela justiça em primeiro grau. Mendes respondeu dizendo que a atuação de Moro era muito mais rápida. “Eu acho que há morosidade nas investigações na PGR. Curitiba é muito mais célere do que a PGR. Isso é evidente”, disse o ministro.
Em março de 2017 Gilmar Mendes acusou a PGR de divulgar de forma indevida informações de processos sigilosos. “Quando praticado por funcionário público, vazamento é eufemismo para um crime que os procuradores certamente não desconhecem. A violação do sigilo está no artigo 325 do Código Penal (…) Mais grave é que a notícia dá conta dessa prática dentro da estrutura da PGR. Isso é constrangedor.”
No dia seguinte, sem mencionar o ministro do STF em seu discurso, Janot rebateu as críticas de Gilmar. “Não vi uma só palavra de quem teve uma disenteria verbal a se pronunciar sobre esta imputação ao Congresso, ao Palácio e até o Supremo”, disse o ex-PGR.
Os dois exemplos foram os mais explícitos de trocas de farpas em declarações públicas da dupla. Em citações indiretas há dezenas de casos desde ao menos 2015 no noticiário político brasileiro. O tom estava mais forte nos últimos meses do mandato de Janot, quando a PGR já preparava a primeira denúncia contra o ex-presidente Michel Temer.
Após a saída de Janot, os dois chegaram a se estranhar até em avião para a Europa. Um mês após sair do cargo, em outubro de 2017, Janot insinuou que Gilmar tivesse algum problema de saúde que o levasse a ter ódio. “Ninguém tem essa capacidade de odiar gratuitamente a várias pessoas a não ser que tenha algum problema, né, de saúde”, disse durante palestra na Universidade Georgetown, em Washington.
Pouco antes disso Gilmar chegou a sugerir durante sessão no STF que Janot deveria ter pedido a própria prisão diante do malogro das investigações do caso JBS. “Eu sou da turma de 84. Certamente já ouvimos falar de procuradores preguiçosos, de procuradores violentos, alcoólatras, mas não de procuradores ladrões. É disso que se cuida aqui, corruptos num processo de investigação. Essa pecha a Procuradoria não merecia ao fazer investigação criminal”, disse Gilmar em setembro de 2017 em uma das primeiras sessões após a saída de Janot.
Gilmar não deu trégua na língua afiada durante todo o mandato de Janot e chegou a falar de morte ao se referir ao ex-PGR. Instantes antes da última sessão plenária do Supremo durante o mandato de Janot, o ministro usou erroneamente um trecho de um poema para se referir à despedida. “Eu diria em relação ao procurador-geral Janot uma frase de Bocage: ‘Que saiba morrer quem viver não soube'”, disse Gilmar em 14 de setembro de 2017, quatro meses depois do episódio que quase tirou sua própria vida. A frase do soneto do poeta português Manuel Maria Barbosa Du Bocage diz, no entanto: “Saiba morrer o que viver não soube”.
Em uma entrevista ao GLOBO, Mendes disse que no passado teve relação cordial com Janot. Nada além disso. Os dois passaram no concurso do Ministério Público em 1984, mas seguiram caminhos diferentes.
— Nunca fomos amigos. Tínhamos uma relação cordial. Ado, ado, ado, cada qual no seu quadrado — sentenciou Mendes.
Janot, que já acusou Mendes de sofrer de “disenteria verbal”, disse não ter qualquer problema de natureza pessoal com o ministro. Ele lembra do amistoso encontro entre os dois em Colônia, mas prefere não fazer comentário sobre o clima de permanente beligerância. Janot argumenta que apenas faz o trabalho de procurador-geral e sustenta ainda que nunca partiu para o ataque contra Mendes. A iniciativa dos confrontos, segundo ele, teria sido sempre do ministro.
— Nas poucas vezes em que fiz algum comentário, foi como resposta a uma crítica — disse Janot.
No barco com Mendes e Janot, no já distante 20 de agosto de 1988, estavam também os procuradores Wagner Gonçalves e Guilherme Magaldi, hoje já aposentados. Gonçalves toma partido de Janot. Acha que Mendes só passou a fazer críticas ao procurador-geral depois que a Lava-Jato bateu às portas de tucanos e peemedebistas. Advogado no Rio de Janeiro, Magaldi diz que só tem a lamentar as diatribes entre os dois ex-colegas.
— A vida dá muitas voltas, e eu só queria que eles voltassem a se falar — diz o advogado.
Estadão
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