Mulheres na política brasileira, uma inclusão falaciosa
Por Gustavo Melo (@gustavomelo_g)
Perante o Congresso Nacional e milhões de brasileiros que acompanhavam pela televisão, Dilma Rousseff toma posse em um dia histórico para este país. De roupa branca, ela se destaca entre vários engravatados que ocupavam a mesa, se posiciona para o seu discurso de posse e declara: “Meus queridos brasileiros e brasileiras, pela decisão soberana do povo, hoje será a primeira vez que a faixa presidencial cingirá o ombro de uma mulher”. A então empossada Presidente do Brasil tem a fala interrompida por uma acalorada salva de palmas dos presentes no lotado Congresso Nacional, que recebia chefes de estado, representantes dos poderes legislativos e judiciários e vários parlamentares eleitos na última eleição, em sua maioria homens.
A república, que já teve ao todo 37 presidentes, ganhava naquele 1º de janeiro de 2011 uma presidenta, quebrando um padrão na história deste país, afinal nunca antes uma mulher tinha conquistado a confiança de tantos brasileiros para ocupar o cargo mais importante desta nação. Todos silenciam, voltam a atenção para a pessoa em foco que retoma a fala e destaca:
“Venho para abrir portas para que muitas outras mulheres também possam, no futuro, ser presidentas, e para que no dia de hoje todas as mulheres brasileiras sintam o orgulho e a alegria de ser mulher. ”
Quando foi eleita em 2010, com 56% dos votos, um novo horizonte se abriu para as brasileiras, para que pudessem se sentir representadas. Porém, se no mais alto cargo da república um paradigma era quebrado, o poder legislativo continuava com a mesma configuração. Naquele pleito, a taxa de eleição de mulheres ao Congresso Nacional continuou baixa: das 54 cadeiras disponíveis no Senado Federal, apenas 13% passariam a ser composta por mulheres. Na Câmara o número foi ainda menor: somente 9%.
Esse baixo índice de representatividade feminina no nosso país ainda se repetem. Uma pesquisa divulgada em 2018 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em parceria com a Inter-Parliamentary Union – IPU mostrou que de um total de 192 países, o Brasil ocupa a 152ª posição no ranking de representatividade feminina na Câmara dos Deputados, ficando atrás de países como Senegal, Djibuti e Burkina Faso.
Em Agosto de 2019, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) decidiu cassar o mandato de dois vereadores de Rosário do Sul (RS) pela transferência de recursos destinados a campanhas femininas para candidatos homens. É a primeira vez que o TSE decreta a perda de cargo por esse tipo de prática. Embora essa medida seja histórica, ela mostra que mesmo com leis aprovadas, as mulheres ainda têm muitas dificuldades para adentar na política brasileira.
DA PRIMEIRA ELEITORA À LUTA POR DIREITOS POLÍTICOS
Mesmo enfrentando inúmeras dificuldades para participar da vida pública e das decisões deste país, as brasileiras vivem hoje o seu melhor momento em toda nossa história eleitoral, tudo isso graças a grandes lutas travadas há vários anos. A República havia sido proclamada no Brasil em 1889 e, no início do século XX, a cidadania feminina continuava incompleta. As mulheres ainda lutavam pelo direito à educação, ao trabalho e ao voto. Um pouco antes, a dentista gaúcha Isabel de Mattos Dillon conseguiu uma brecha na Lei Saraiva e solicitou sua inclusão na lista de eleitores do Rio Grande do Sul. Esta Lei, de 1880, dizia que todo brasileiro possuidor de um título científico poderia votar. Usando deste artifício, ela entrou para a história como a primeira mulher a votar no Brasil.
A partir deste episódio, avanços são observados na sociedade brasileira, a indústria cresce e o país começa a se urbanizar. Mudanças de costumes expressivas também eram sentidas, fruto da elevação da educação no país. Nesse contexto, 27 mulheres reuniram-se na cidade do Rio de Janeiro em dezembro de 1910, e criaram o Partido Feminino Republicano (PRF), o objetivo era claro: a necessidade de integrá-las na sociedade política.
Nove anos depois, Leolinda Daltro, fundadora do PRF, lutou para que um senador apresentasse o primeiro projeto de lei em favor do voto feminino. O senador Justo Chermont (PA), autor da proposição, sofreu dificuldades para apresentar o projeto, que passou pela primeira votação, mas acabou sendo esquecido. Nesse período, cabia aos estados a competência de legislar sobre a matéria eleitoral e, na contramão do país, o Rio Grande do Norte permitiu o voto feminino já em 1927, mas as mulheres que votaram nessa eleição tiveram seus votos cassados pelo Senado, já que o projeto ainda tramitava na casa.
Após muitas lutas, a voz feminina pode ser ouvida de fato com a elaboração do primeiro Código Eleitoral do Brasil, em 1932. O código previa a criação da Justiça Eleitoral, eleições padronizadas e voto obrigatório, secreto e universal, com a inclusão das mulheres. Consequentemente, no pleito eleitoral do ano seguinte, as brasileiras puderam votar e ser votadas pela primeira vez. Com a Constituição de 1934, o voto feminino era estendido às solteiras e viúvas que exerciam trabalhos remunerados, porém dependiam da autorizadas dos maridos. Foi com Código Eleitoral de 1965 que brasileiros e brasileiras tiveram seus votos e seus direitos políticos igualados.
A conquista do direito de votar e ser votada foi apenas o início de uma grande revolução na política nacional. Daquela data em diante, a busca pela ampliação de espaços para as mulheres se tornou obsessão, porém os resultados demoraram a ser vistos, qualquer análise mostra que o tempo trouxe ganhos, mas o ritmo de mais lento que o desejado.
DIREITOS CONQUISTADOS, CONSOLIDAÇÃO EM MARCHA LENTA
A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua) de 2018 mostrou que o número de mulheres no Brasil ultrapassa ao de homens. Segundo a pesquisa, a população brasileira é composta por 48,3% de homens e 51,7% de mulheres. Sendo as eleições o processo eleitoral no qual os candidatos são eleitos democraticamente pelo povo a fim de representar a população, seria lógico afirmar que seria igual ou semelhante a esses dados, a composição do legislativo brasileiro. Passados mais de 85 anos, a nossa configuração política anda longe disso. Analisando os dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) sobre as eleições dos últimos 30 anos, observa-se um lentíssimo crescimento da participação feminina no parlamento brasileiro.
O gráfico acima, montado a partir de dados obtidos do TSE, mostra a porcentagem de eleitas desde 1982 para a Câmara e Senado Federal. O que os números revelam é um quadro preocupante, e totalmente reverso da sociedade. Na última eleição, o país elegeu o maior número de mulheres na história para a Câmara dos Deputados: Foram eleitas 77, 47 de primeira viagem e as outras 30 foram reeleitas. O número ainda é bem baixo, representa somente 15% de todos os parlamentares, mais aponta um crescimento de 50% em relação ao pleito de 2014. O número poderia ser maior, já que três estados não elegeram nenhuma mulher para o cargo: Amazonas, Maranhão e Sergipe.
A senadora Eliziane Gama (Cidadania – MA), eleita para o seu primeiro mandato na Câmara alta em 2018, lembra o aumento na Câmara dos Deputados de 9% para 15%, e destaca que é possível caminhar para uma maior participação feminina na política. A parlamentar disse que, mesmo com número menor, é preciso buscar uma participação mais efetiva em postos importantes da Casa.
— É importante agora esse sentimento de ampliação, de fazer funcionar as estruturas que nós temos de participação das mulheres, por exemplo, em lideranças, em comissões especiais, em comissões ordinárias, em comissões permanentes. Isso é fundamental para que a gente possa imprimir a marca da mulher — afirmou a maranhense.
No Senado, a estatística nada mudou, comparando com a última eleição, a porcentagem foi menor, porém, na eleição de 2014, só foi trocado um terço da casa, sendo eleitas cinco senadoras para as 27 vagas disponíveis. Comparando com a última eleição, no mesmo modelo, a de 2010, observa-se que o cenário não mudou. Nos dois anos, foram eleitas apenas sete mulheres, na mais recente, em 2018, em 20 estados, nenhuma candidatura feminina obteve êxito. Nos estados do Acre, Bahia e Tocantins, os eleitores nem tinham opção, pois não havia candidatas.
O cenário apontado expõe a discordância entre a população e o parlamento brasileiro. Na melhor eleição das ativistas brasileiras, foram eleitas 7 (13%) no Senado e 77 (15%) na câmara. Talvez seja esse o principal motivo de nunca, em nossa história, uma mulher ter exercido a presidência de uma das duas casas. Um fato curioso aconteceu recentemente: somente em 2015 foi construído um banheiro feminino no Plenário do Senado Federal, isso 55 anos após sua inauguração daquele poder. Antes disso, as 12 senadoras eram obrigadas a usar o banheiro do restaurante. Fato que mostra fisicamente que as mulheres não faziam parte daquele ambiente. Esse retrato é totalmente oposto à população nacional. Dados do TSE mostram que, em novembro de 2019, as mulheres representavam 52,6% dos 147.607.069 eleitores brasileiros, refletindo a superioridade do gênero feminino na população. Como se pode observar, mesmo passado tanto tempo, o legislativo ainda está distante de representar a verdadeira face da população brasileira.
INCENTIVO DAS LEIS
Querendo tornar mais nossa política brasileira mais acessível, algumas medidas já estão em prática. Em 1997, foi aprovada a Lei 9504, que prevê a reserva de 30% das candidaturas das coligações ou partidos para cada sexo nas eleições proporcionais, ou seja, para vereador/a, deputado/a estadual e deputado/a federal, porém a Lei não tinha grande efeito, já que quase a maioria dos partidos não preenchiam as vagas reservadas às candidatas, deixando-as vazias, bem diferente das vagas masculinas, que tinham todas as vagas ocupadas. Já em 2009, a redação do artigo 10º da Lei Eleitoral sofreu alteração, passando a obrigar partidos e coligações a preencher o mínimo de 30% e o máximo de 70% para candidaturas de cada sexo.
Mesmo com a provação da Lei Eleitoral, após a grande movimentação feita em 2009 para mudar as regras eleitorais nas eleições de 2010, os resultados mostraram que os ajustes não foram suficientes para garantir uma maior presença feminina no congresso. O número de eleitas para a Câmara dos Deputados se manteve em 9%, exatamente o mesmo percentual de 2006.
Nesse sentido, a ministra do TSE Luciana Lóssio, em entrevista á GloboNews, defendeu que as medidas tomadas em 2009 não eram eficientes para garantir os mesmos direitos ás mulheres: “É importante as pessoas entenderem, o sistema como todo, a lei trás essa determinação de que os partidos deverão preencher 30% das suas cadeiras com mulheres, mas quais são os meios que a legislação dá ao partido 5% do fundo partidário e 10% da rádio e TV, a conta não fecha. Você não pode impor uma meta de 30% e apenas facultar ao partido que ele aplique pelo menos 5%”.
Registra-se que, em março de 2018, o TSE decidiu, por unanimidade, que os recursos do Fundo Partidário destinado aos partidos políticos devem ser distribuídos de forma igual entre ambos os sexos, ficando pelo menos 30% para o financiamento de campanhas de mulheres.
Em seu voto, a ministra Rosa Weber, relatora do caso, destacou que a Justiça Eleitoral sempre estimulou ações afirmativas para aumentar a participação das mulheres na política. Defendeu a paridade na distribuição dos recursos e mostrou que o Brasil ainda está muito atrás de tantos países quando é analisada a participação feminina na sociedade.
— Em virtude do princípio [constitucional] da igualdade, não pode o partido político criar distinções na distribuição desses recursos, exclusivamente baseado no gênero. Assim, não há como deixar de reconhecer, como sendo a única interpretação constitucional admissível aquela que determina aos partidos políticos a distribuição dos recursos públicos destinados à campanha eleitoral na exata proporção das candidaturas de ambos os sexos.
Sobre o tema, a cientista política Malu Gatto, pesquisadora da Universidade de Zurique, na Suíça, e professora da Universidade College London, que fez estudos profundos nos últimos anos sobre as dinâmicas que levam à baixa representação feminina no poder, em entrevista à Revista Exame, avaliou positivamente a determinação do TSE.
— Essa decisão é importante porque determina, legalmente, que não basta só cumprir os números das cotas sem apoiar, de fato, essas candidaturas. Os partidos não vão querer perder o equivalente a 510 milhões de reais do fundo, então, eles vão ter que nomear e impulsionar candidatas que sejam, de fato, viáveis. Do contrário, vão perder esse dinheiro e essas candidaturas. A dinâmica provavelmente vai mudar consideravelmente.
A FRAUDE ELEITOREIRA E O LARANJAL DE CADA PARTIDO
As primeiras eleições com essa nova legislação, foram as de 2018, e seria uma grande oportunidade de gerar resultados bem mais positivos que os já vistos nesta reportagem, na Câmara um aumento, no Senado, uma estagnação.
No início do 2019, vieram à tona denúncias envolvendo uso de candidaturas de fachada pelo Partido Social Liberal (PSL). Entre os acusados, estavam dois dos principais nomes do governo: o ministro do Turismo, Marcelo Álvaro Antônio, e o do agora ex-ministro da Secretaria-Geral da Presidência, Gustavo Bebianno.
O Jornal Folha de São Paulo detalhou que o PSL repassou R$ 400 mil para uma candidata à deputada federal do partido, em Pernambuco. O que estranha é que o repasse foi feito dias antes da eleição, e a candidata recebeu apenas 274 votos. O jornal divulgou também que R$ 250 mil foram repassados para uma gráfica, que tinha endereço de fachada. Bebianno, na época ministro de Bolsonaro, era o responsável por autorizar os repasses.
Versões à parte sobre o fato, registra-se que, segundo o levantamento de Malu Gatto, em parceria com Kristin Wyllie, da James Madison University, 35% de todas as candidaturas femininas de 2018 não chegaram a alcançar 320 votos. O que indica que essas candidatas sequer fizeram campanha, deixando mais evidente que elas foram usadas apenas para cumprir formalmente a lei de cotas.
Dentre as candidatas do PSL para a Câmara dos Deputados, 16% podem ter sido laranja. Mas a suposta fraude teria sido cometida por 20 partidos, em todos os campos ideológicos. Os partidos de oposição também apareceram no estudo apresentando um número significativo. No principal deles, o Partido dos Trabalhadores, presidido por Gleisi Hoffmann, suspeita-se que 11% das candidatas burlaram a lei.
Dentre os partidos considerados de esquerda, o Partido Comunista do Brasil (PC do B) foi o que apareceu com maior porcentagem de possíveis candidatas “laranja”, o percentual entre as candidatas à Câmara foi de 31%. O Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) também apareceu nesse top 10, ficando em 7º lugar com 27,1%. A responsável pelo estudo mostrou-se surpresa com os números:
— A gente poderia imaginar que partidos de esquerda talvez optassem por nomear menos laranjas, mas é uma prática que se aplica tanto a partidos de esquerda quanto de direita.
O levantamento das pesquisados mostrou que o PROS foi o partido com o maior percentual de candidaturas possivelmente laranjas. O partido teve 75 candidatas em todos o país, 40% delas estavam estavam nessa condição. Procurados pela reportagem, todos os partidos afirmaram que não não financiaram candidatas laranja.
Com os escândalos expostos, parlamentares do PSL e do PSD – partidos com maior quantidade de possíveis laranjas entre mulheres, na comparação com homens – propuseram projetos de lei que visam acabar com as cotas e com o fundo de campanha.
O autor da proposta é o senador Angelo Coronel (PSD-BA), para ele, seria necessário uma mudança cultural para termos uma participação feminina e masculina equilibrada no Congresso.
“A diminuta participação feminina é resultado de questões históricas muito mais complexas que a simples disposição financeira. Nesse sentido, uma medida forçada se mostra vazia de efeitos, como se tem percebido”, afirma ele, na justificativa do projeto.
Mas, para a professora Malu Gatto, a solução desse problema é garantir fiscalização eficaz e punição severa aos partidos que não cumprirem a lei devidamente.
“Esse foi o primeiro ano do uso do fundo de campanha e do fim das doações de empresas. Agora, caberá ao TSE ajustar a decisão e aprimorar os mecanismos de controle da forma como esse dinheiro é repartido”, defende, citando que o TSE precisa deixar claro que 30% das verbas para eleições proporcionais (Câmara e Assembleias) devem ir para candidatas.
Gatto destaca também que, em países onde foram adotados cotas femininas para o Congresso Nacional, as mulheres já se aproximam da metade das cadeiras. No México, 48% são ocupada por mulheres. Na Bolívia, 53% dos deputados são mulheres. Na Costa Rica e na Nicarágua, elas são 46% e 44% do Legislativo, respectivamente.
“Ou seja, países da região mostram que o problema é institucional e não cultural “, afirma Gatto.
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