Milicianos mataram Marielle por causa de terras, diz general
A vereadora Marielle Franco (PSOL) foi morta porque milicianos acreditaram que ela podia atrapalhar os negócios ligados à grilagem de terras na zona oeste do Rio. O crime estava sendo planejado desde 2017, muito antes de o governo federal decidir decretar a intervenção federal no Rio. As revelações foram feitas pelo general Richard Nunes, secretário da Segurança Pública do Rio. Nunes, que assumiu a pasta no dia 27 de fevereiro, relatou os casos que encontrou na secretaria e diz que vários generais que vão assumir cargos na área no próximo ano procuraram o comando da intervenção no Rio para levar o modelo de gestão para outros Estados. Leia, a seguir, sua entrevista:
O senhor imaginava o tamanho do problema que encontraria aqui?
Imaginava. Primeiro porque sou do Rio e acompanhei a evolução do quadro da Segurança no Estado. Segundo, porque comandei a força de pacificação na Maré (ocupação militar de complexo de favelas, zona norte do Rio, de abril 2014 a junho de 2015), vendo de perto no nível tático, na ponta da linha, o que estava acontecendo no Estado e, depois, como comandante da Eceme (Escola de Comando e Estado-Maior do Exército) era um tema de estudo nosso. Não me surpreendeu, mas o fato de não me surpreender não significa que eu não tenha me deparado com ações que eu não imagina.
Dos R$ 1,2 bilhão enviados pelo governo federal, por enquanto o gabinete da intervenção conseguiu empenhar 39,06% do total ou R$ 468 milhões. Qual foi a dificuldade para se conseguir gastar esse dinheiro?
Esse é um aspecto fundamental do início da ação: compreender as restrições impostas pelo regime de recuperação fiscal; Isso não estava claro para ninguém. O regime de recuperação fiscal estabelecido em setembro de 2017 nos causou embaraço de todas ordem. Tanto que a verba federal alocada aqui teve de ser administrada por uma estrutura que não existia, que nós tivemos que criar. Ai foi uma luta contra o tempo. Em uma intervenção de curta duração, tivemos de montar esse processo ao mesmo tempo em que montávamos a estrutura para fazer as licitações. No âmbito da secretaria, colocamos em funcionamento o Fised, o Fundo Estadual de Segurança Pública e e Desenvolvimento Social. Ele é uma dádiva. São 5% dos royalties do petróleo. Neste ano, já superamos R$ 300 milhões e no próximo nossa expectativa é superar R$ 400 milhões.
Como estava frota da polícia quando o senhor chegou?
O índice de indisponibilidade era de 50%. Metade da frota sem condições de rodar e as últimas aquisições datando dos grandes eventos, coisa de cinco anos. A crise econômica que se abateu sobre o Rio provocou dois efeitos graves: o atraso de pagamento de salário e o Estado deixar de honrar contratos, como o de manutenção. Os carros iam enguiçado e sendo encostados. Tinha batalhão com menos de dez viaturas para rodar. O policiamento virou a pé com consequências gravíssimas para os indicadores de criminalidade. Não tínhamos ostensividade. Mesmo que tivesse policial não tinha viatura para transportá-lo.
O senhor tinha ideia disso quando assumiu?
Víamos a criminalidade se expandir e não víamos mais a polícia. A polícia desapareceu. A polícia estava a pé. E a desmotivação era completa. O quadro que encontramos em fevereiro era muito negativo. Com pagamentos atrasados – o 13.º só foi sair no final de abril –, sem equipamento, sem capacidade de mobilização, pois algumas verbas de premiação não eram pagas, como o regime adicional de serviço, no qual o policial trabalha na folga. Criou-se um descrédito, porque a crise econômica cria uma crise moral e as pessoas começam a deixar o interesse público em segundo plano. Era um salve-se quem puder. Tivemos de atacar fortemente isso aí, e foi na garganta, pois não tínhamos o que entregar. Era pegar o pessoal e dizer: acredite que vai melhorar. Nossa intervenção foi de gestão, de atrair os policiais com maior senso de liderança para os postos chaves. Hoje, a situação da frota não é a ideal, mas nós conseguimos fazer a entrega e comprar cerca de 2 mil viaturas. Isso com recursos do Estado. As com recursos federais tem mais 1,5 mil viaturas que devem chegar de um licitação de R$ 200 milhões (hoje a PM do Rio tem 3,5 mil viaturas e a Polícia Civil tem 1,3 mil viaturas). E também criamos uma estrutura logística para a manutenção.
O senhor considera que esse foi o principal efeito da intervenção?
Esse foi o grande diferencial dessa intervenção, o legado que acredito que vai ser apropriado pela Secretaria Nacional de Segurança Pública. O general Guilherme Cals Theophilo Gaspar de Oliveira virá aqui se reunir comigo e com o general Braga Netto; o (futuro) secretário de Segurança de São Paulo, o general João Camilo Pires de Campos, o futuro secretário do Paraná, general Luiz Carbonell, estiveram aqui conversando. Está havendo um interesse nas experiências da intervenção federal que possam ser úteis em outras partes do País. E o grande diferencial foi exatamente esse. Fizemos a intervenção com propósito muito mais de reestruturar os órgãos do que de tratarmos do dia a dia da criminalidade. Segurança Pública é muito absorvida pela temática da criminalidade, mas ela não é só isso. Nossa preocupação é que o legado da intervenção tenha prosseguimento. O maior risco que a gente corre aqui é a divisão da secretaria, como pretendido pelo novo governo. É como acabar com o Ministério da Defesa. Como acabar com essa estrutura e fazer a integração? Já deixei patente em várias reuniões. Eu e o general (interventor) Braga Netto, mas o tempo vai passando, e a gente vai ficando cada vez mais preocupado. Não adianta ficar pedindo GLO (operações de garantia da lei da ordem com emprego de tropa das Forças Armadas na segurança pública). Esse negócio de GLO virou uma panaceia.
Aliás, continua GLO depois do fim da intervenção?
Não. GLO morre com a intervenção, no dia 31 de dezembro.
O senhor é crítico do modelo das Unidades de Polícia Pacificadoras (UPPs). Ele deve ser abandonado?
A minha crítica não é ao modelo em si, mas à maneira indiscriminada como ele foi empregado. Imaginar que em uma área de atuação de um batalhão existe uma organização comandada por um oficial inferior com efetivo superior ao do batalhão que não presta contas ao batalhão. Isso é um contrassenso. Há locais em que você pode ter uma polícia de proximidade dentro do conceito de pacificação perfeitamente e fazendo isso integrado ao batalhão da área. Não extinguimos as UPPs. Fizemos uma rearticulação. Sete delas deixaram de ser UPPs e passaram a ser companhias de batalhão, que é o caso da Cidade de Deus (favela na zona oeste do Rio). Ali não tem sentido fazer uma UPP. Como faz polícia de proximidade em uma área enorme daquela? É colocar no ombro da polícia uma responsabilidade maior do que ela pode assumir. E começa a dar errado, pois o policial se torna refém de uma estrutura montada no terreno inadequada para o enfrentamento daquela realidade. Imobiliza a polícia. Ela precisa ter dinamismo, deslocar-se no terreno, ter liberdade de ação. Determinadas UPPs se tornaram uma prisão para os policiais. Eles tinham de permanecer em bases sem a menor condição de fazer o patrulhamento daquela área. Foi um desperdício de recursos e daí a perda de credibilidade. Seria melhor preservar as UPPs naquelas iniciais para que elas se consolidassem. Porém, o interesse político falou mais alto e houve expansão das UPPs para outras áreas onde não havia condições de dar certo porque naquela época era uma marca positiva e trazia dividendos político-eleitorais. Tivemos de romper com isso e só a intervenção podia fazer isso. Pela autonomia política que desfrutamos a gente pode fazer esse movimento sem causar maiores comoções. O modelo UPP não está proscrito. Está sendo revisto e poderá funcionar em outras regiões do País.
General, o caso Marielle foi uma afronta à intervenção?
Não foi. O que entendo hoje é que os criminosos superestimaram o papel que a vereadora poderia desempenhar. Era um crime que já estava sendo planejado desde o final de 2017, antes da intervenção. Isso aí nós temos já; está claro na investigação. O que aconteceu foi o contrário. Os criminosos se deram conta da dimensão que tomou o crime por ter sido cometido na intervenção. Não podemos entender como afronta porque eu assumi em 27 de fevereiro. E dei posse ao comandante da PM no dia 14 de março, que foi o dia do crime. Estávamos iniciando um trabalho. E hoje com os dados de que dispomos de 19 volumes de investigação fica claro que se superestimou o papel que ela desempenhava.
Que papel?
Ela estava lidando em determinada área do Rio controlada por milicianos, onde interesses econômicos de toda ordem são colocados em jogo. No momento em que determinada liderança política, membro do legislativo, começa a questionar as relações que se estabelecem naquela comunidade, afeta os interesses daqueles grupos criminosos. É nesse ponto que a gente precisa chegar, provar essa tese, que está muito sólida. O que leva ao assassinato da vereadora e do motorista é essa percepção de que ela colocaria em risco naquelas áreas os interesses desses grupos criminosos.
Como ela colocaria em risco?
A milícia atua muito em cima da posse de terra e assim faz a exploração de todos os recursos. E há no Rio, na área oeste, na baixada de Jacarepaguá problemas graves de loteamento, de ocupação de terras. Essas áreas são complicadas.
A atuação dela seria de fazer…
Uma conscientização daquelas pessoas sobre a posse da terra. Isso causou instabilidade e é por aí que nós estamos caminhando. Mais do que isso eu não posso dizer.
O sr. ou a intervenção receberam pressões por esse crime?
Zero. O que há é muita especulação. Houve um movimento para tentar federalizar esse investigação totalmente desprovido de fundamento. Então foi um incômodo que não auxiliou em nada a investigação. Houve essa sugestão sob a suspeita de que a Polícia Civil não estaria fazendo um trabalho isento. Isso não tem fundamento. Temos de ter muito cuidado em não dar voz a criminosos que se encontram preso e colocam em xeque o processo de investigação (ele se refere á acusação feita pelo miliciano Orlando Oliveira de Araújo, o Orlando de Curicica, um dos suspeitos de participar do crime). É um absurdo em uma nação democrática colocar em xeque uma investigação a partir do depoimento de um preso.
Esse criminoso faz isso como peça de sua defesa?
É lógico. Ele está sendo muito bem tratado por certa parcela da mídia e de determinadas instituições que estão dando voz para ele. Aquilo ali não é uma delação premiada coisa nenhuma. Está colocando sombras onde as próprias famílias (das vítimas) estão seguras de que se está fazendo o melhor trabalho possível.
Hoje depois desse tempo todo pode-se dizer que as milícias são hoje um perigo maior para o Rio do que as facções criminosas?
Acho que se equivalem. O que há de perigoso nas milícia é o modo como ela explora determinadas atividades. Ela é mais insidiosa. Porém, facções de tráfico têm adotado práticas de milícia e vice-versa. Então, como secretário de segurança, não há como estabelecer um grau de risco diferenciado. No momento em que a milícia passa a aceitar o tráfico de drogas na comunidade de sua presença e quando o traficante também se dedica a modalidades de crimes semelhantes ao que a milícia tem realizado, para mim o cenário indica que temos de combater ambos esses movimentos criminosas com a mesma intensidade.
O senhor vai conseguir deixar a secretaria com o anúncio da prisão dos envolvidos nesse crime?
Não tenho ideia. Nossa luta é contra o tempo; é coletar muitos dados que precisamos checar, de característica técnica, em um quadro de deficiência estrutural grande que encontramos. Esse cruzamento de dados, para poder fechar em cima dos autores, é demorado e complicado; filtros têm de ser feitos com precisão para que não se cometa erro. O erro que a gente não pode cometer não é deixar de anunciar até 31 de dezembro. O erro é anunciar precipitadamente e essas pessoas virem a ser inocentadas por um inquérito mal concluído. Não sou um ator político, até porque continuo no Exército, vou seguir minha vida. Para mim, o mais grave seria tentar, de forma precipitada, apresentar alguns nomes que no futuro não sejam condenados. Centenas de depoimentos foram colhidos. Há 19 volumes de investigação. Nossa expectativa é resolver.
Alguns dos suspeitos estão mortos?
É provável que sim.
Queima de arquivo?
Queima de arquivo ainda é difícil de caracterizar. Mas porque são pessoas que vivem da prática de crimes com certa frequência estão mais sujeitos a esse tipo de desfecho.
Uma das críticas à polícia do Rio é sua letalidade. De 2013 a 2017, o Exército e a Marinha em suas operações mataram 19 pessoas e um militar morreu. Esse é nível de confronto menor do que os batalhões da PM. O que faz a ação das Forças Armadas tenham um nível de confronto menor do que a das polícias?
A capacidade dissuasória. A questão da mortalidade é mais complexa. Comparar o Rio com outros Estados é complicado. O Rio convive com três facções de tráfico que disputam espaço, além de grupos milicianos. É uma dinâmica de enfrentamento totalmente diferente do que ocorre em outros Estados, onde uma facção tem hegemonia. Então, temos no Rio uma quantidade de armamento nessas áreas considerável. Isso faz com que a polícia se depare com confrontos imprevistos. Nossa orientação é que operações em comunidade sejam feitas com absoluta superioridade de meios para dissuadir o enfrentamento. Não tem havido atuação indiscriminada da polícia. Isso é um exagero.
É necessário mudar procedimentos operacionais?
É questão de treinamento, que vamos tentar aperfeiçoar. Esse ano, tudo indica, vamos ter redução de mortes de policiais em confronto. Esse aumento de mortes em confronto com a polícia se tornou mais debatido porque outros indicadores de violência no Rio caíram, como roubos e homicídios, e esse não caiu na mesma proporção, pois tem havido uma atuação da polícia mais ostensiva. A polícia recuperou a ostensividade que havia perdido. Ela está mais presente. Muitos casos caracterizam a legítima defesa dos policiais. Eu não comparo com as Forças Armadas porque seria até uma deslealdade com as polícias. Quando ocupei a Maré, tínhamos a superioridade absoluta de meios. Ai de quem nos enfrentasse. Não nos enfrentávamos porque não eram loucos.
O senhor acha que as regras de engajamento devem mudar como a questão do bandido armado com fuzil?
Sempre direcionei minha atuação como secretário para o nível político-estratégico e deixei o operacional e tático mais com diretrizes, pois não entendo que se resolva em nível tático um problema é que natureza estratégica. Mas é lógico que um criminoso armado com fuzil é uma ameaça. Não importa se ele está no ombro ou na mão. Alguém que porte fuzil sem ser policial ou militar é uma ameaça à sociedade e é lícito, no meu entendimento, que ele seja engajado pela polícia diante de atitude tão agressiva. Mas não é com regras de engajamento que se resolve isso. É com mudança cultural, para que a sociedade toda entenda que isso é uma ameaça. Tratar um criminoso desses como vítima do sistema é extremamente grave e infelizmente esse discurso ainda é escutado aqui e acolá.
Com o senhor aqui, o (João Camilo Pires de) Campos em São Paulo, e o (Luiz Felipe)Carbonell no Paraná, o que o senhor acha que se deve essa opção do mundo político de ir procurar nas Forças Armadas gerentes para a Segurança Pública?
A sociedade chegou a um ponto de amadurecimento de entender que nossa maior crise era ética, muito mais do que econômica e social. E as Forças Armadas conseguiram atravessar todo esse processo mantendo alto grau de credibilidade. Ela conseguiram preservar-se pelos valores que encarnam. Outro aspecto inegável foi a intervenção, que sinalizou para o País que há condições de se enfrentar problemas gravíssimos por meio de uma correta percepção da realidade e encaminhamento de soluções que não sejam midiáticas e pirotécnicas e traduzam algo que pode ser colhido no futuro, que é próprio de quem não tem interesse político imediato.Nas figuras dos generais da reserva, identifica-se que eles não têm outro interesse do que o da sociedade e construíram uma vida calcada em princípios e valores éticos sólidos.
Mas esse interesse da política pelos militares não pode levar à divisões no Exército?
Estamos plenamente conscientes de que uma coisa são militares da reserva sendo chamados a atuar na esfera política. Outra coisa são as instituições militares se envolveram na vida político-partidária. Não vejo que isso seja um risco, pois estamos deixando bem separadas as duas coisas.
Não entraremos em ciclo que pode gerar novas divisões, Dizia-se que o Exército devia ter a política do Exército e não no Exército. Mas nas décadas de 1940 a 1960 isso não ocorreu. A partir do momento que se tem um partido como o PSL com imagem fortemente vinculado à Forças Armadas a oposição não tende a buscar referências nelas, podendo levar a divisões internas?
Acho que nós todos temos muita consciência de todo o fenômeno histórico que caracterizou a República. Isso é algo que tem de nos preocupar no sentido de uma vigilância permanente. Não como risco efetivo de que isso possa nos dividir. Não permitimos que haja qualquer desvio de nossas normas e estatutos.
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