Médicos alertam que Covid-19 pode atacar vários órgãos do corpo humano em pacientes graves
Do Rio de Janeiro a Nova York, médicos observam a emergência de um novo padrão da Covid-19, à medida que ela se espalha pelo mundo e mais casos severos aparecem. Ele ataca não apenas os pulmões, mas também os rins, o fígado, o coração, o cérebro e os intestinos.
A Covid-19 pode atacar quase qualquer parte do corpo humano com consequências devastadoras, disse à revista Science, uma das bíblias da pesquisa mundial, o cardiologista Harlan Krumholz, da Universidade de Yale, e que lidera estudos nos Estados Unidos sobre os casos graves de Covid-19. “Sua ferocidade é arrasadora e tem nos deixado de joelhos”, afirmou Krumholz.
A maioria dos pacientes graves tem sido acometida por microtrombos. Na circulação pulmonar, esses microtrombos não deixam o sangue chegar aos pulmões para remover o CO2 e levar oxigênio aos órgãos. Uma pesquisa publicada semana passada na revista Thrombosis Research mostrou que 38% de 184 pacientes de Covid-19 numa UTI holandesa tinham sangue coagulado de forma anormal.
Os coágulos sanguíneos bloqueiam a circulação nos pulmões e em outros órgãos. Em consequência, a pessoa pode sofrer embolia pulmonar. Se o rompimento for no cérebro, a vítima sofre um AVC, disse na Thrombosis Research Behnood Bikdeli, da Universidade de Columbia. Bikdeli está convencido que os microtrombos estão associados à gravidade e à letalidade do coronavírus.
Os pulmões costumam ser atacados primeiro. Neles, o coronavírus mata as células dos alvéolos e faz com que eles se rompam. O pulmão fica inflamado, e a circulação dos vasos do sistema respiratório é afetada, o que por si só pode matar.
Mas os rins também são severamente atingidos, e entre 40% e 60% dos pacientes internados em UTIs precisam de diálise. Os microtrombos afetam tão intensamente a circulação que seus efeitos são visíveis em necroses nas mãos e nos pés de alguns pacientes. A tendência crescente de casos de hipercoagulação, que leva aos microtrombos, tem transformado casos leves em críticos.
— Temos visto, por exemplo, muitos pacientes com microtrombos, dentro e fora dos pulmões, e com necrose nos dedos. A Covid-19 é uma doença extremamente grave e complexa — afirma a pneumologista Margareth Dalcolmo, pesquisadora da Fiocruz e colunista do GLOBO, um dos expoentes do combate da Covid-19 no Brasil.
‘Ponta do iceberg’
Atrofia do baço, necrose dos gânglios linfáticos (onde são produzidas células de defesa), hemorragia dos rins, anomalias no fígado e degeneração de neurônios no cérebro foram observados em alguns pacientes, segundo a Science. E um terço dos pacientes hospitalizados nos EUA desenvolveram conjuntivite, mas não se sabe se o coronavírus ataca diretamente os olhos, como faz o ebola.
O respirador tão em falta no mundo é só a ponta do iceberg das necessidades e do sofrimento do corpo atacado pela Covid-19. Os rins bombardeados pelo coronavírus precisam de diálise e muitos necessitam do ECMO (abreviação de oxigenação extracorpórea por membrana), um equipamento que evita a intoxicação pelo CO2 acumulado devido à má oxigenação causada pela doença.
Há casos misteriosos de pessoas com níveis extremamente baixos de oxigênio, potencialmente letais, e que não demonstram sofrer de falta de ar. Uma hipótese é que o cérebro atacado não sinaliza ao corpo que ele precisa de ar. O ataque do vírus não apenas ao sistema respiratório, mas também ao sistema nervoso, é a hipótese mais provável para a perda de olfato e paladar, sintomas comuns na Covid-19.
A ciência ainda não desvendou como o coronavírus pode atacar o cérebro. Mas chamou atenção o caso de uma funcionária de uma companhia área nos EUA de 58 anos, sem comorbidades. Com diagnóstico de Covid-19, ela desenvolveu encefalopatia aguda necrotizante, uma doença rara e gravíssima.
Ela teve sintomas como desorientação e perda de memória em apenas três dias. O caso foi descrito na revista médica Radiology. A mulher sobreviveu, mas não se sabe se terá sequelas.
Vírus pode atacar órgãos
Inicialmente se pensava que os casos mais graves eram causados não pelo ataque direto do vírus propriamente dito, mas à resposta exagerada do sistema imunológico. Essa reação descontrolada, chamada tempestade imunológica, causa uma inflamação generalizada.
Mas agora, segundo estudos publicados nas revistas Science, Lancet e New England Journal of Medicine, cientistas suspeitam que, embora ocorra também a tempestade imunológica, o ataque direto do vírus pode destruir órgãos e matar.
Se estima que 20% das pessoas com coronavírus adoecem com maior gravidade. Destas, 5% vão precisar de UTI. Nas que evoluem para casos mais graves, os sintomas começam a se tornar mais severos entre o oitavo e o 12º dia. Quase sempre, a pessoa começa a ter dificuldade para respirar, entra em fadiga respiratória. Esta pode ser tão intensa, que é preciso colocar o paciente de barriga para baixo na UTI (posição pronada).
A síndrome de angústia respiratória aguda (Sara) atinge os pacientes com Covid 19 grave, mas ela, como o respirador, é apenas uma parte da doença, afirma o médico intensivista Felipe Saddy, chefe da UTI Ventilatória do Copa D’Or, que também atende pacientes com coronavírus no Procardíaco.
— Os pacientes são acometidos pela formação de trombos com enorme intensidade, entre 40% a 60% deles sofrem insuficiência renal e precisam de diálise. Além disso, alguns pacientes começam a reter gás carbônico e entram em colapso respiratório. Eles podem morrer intoxicados por gás carbônico e precisam do ECMO — diz Saddy, que trata de dois pacientes nesta situação, um de 42 anos e outro de 61 anos.
Ele destaca que mesmo no pulmão, a doença apresenta diversas formas de acometimento:
— A Covid-19 é heterogênea no pulmão. O que é bom para um paciente não é bom para outro, nenhum se comporta da mesma forma. Não existe receita única para tratar pacientes com Covid 19. O tratamento tem que ser individualizado e isso é um desafio imenso numa doença que causa adoecimento em massa — diz ele.
Comunidades podem viver ‘massacre’
Saddy salienta que fatores como a genética da pessoa, e comorbidades, como diabetes e hipertensão, importam. Mas há pacientes em estado grave que não são idosos ou têm comorbidades. É o caso do paciente homem de 42 anos, apenas ligeiramente acima do peso.
Também é o caso de uma paciente de 33 anos em estado crítico e tratada pelo imunologista Marcelo Velho. Por dez dias ela apresentou Covid-19 sem maior gravidade, mas seu estado piorou a partir do décimo dia após o surgimento dos sintomas. Ela desenvolveu pneumonia grave, teve que ser submetida à diálise devido à insuficiência renal e está com sepsis (inflamação generalizada). Com quase 20 dias de doença, ela permanece grave.
Saddy está pessimista sobre as chances de tratar os casos graves à medida que o coronavírus se espalha e atinge comunidades de baixa renda:
— Não tenho a menor dúvida de quando bater nas comunidades vai ser um massacre. A Covid 19 nos desafia a toda hora — frisa. O Globo
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