Entrevista: Márlon Reis, criador da Lei da Ficha Limpa, diz que Lula está inelegível
O Globo – A condenação do ex-presidente Lula nesta semana trouxe também para o centro do debate a Lei da Ficha Limpa, aprovada em 2010, que tornou inelegíveis os candidatos que tenham sido condenados em segunda instância. O advogado Márlon Reis, criador do nome “ficha limpa” e um dos principais articuladores do projeto popular que se transformou na lei, disse que não há dúvidas sobre o caso de Lula: ele está inelegível. Mas admitiu que a mesma lei abre possibilidade para o político recorrer. Fundador do Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE), que reúne diversas organizações sociais brasileiras, Márlon também pode participar das próximas eleições, como candidato ao governo do Tocantins, pela Rede.
O ex-presidente Lula, agora condenado em segunda instância por um órgão colegiado, está enquadrado na Lei da Ficha Limpa?
Há uma disposição na Lei de Inelegibilidades, acrescentada pela Lei da Ficha Limpa, que estabelece que os condenados por determinados delitos e com condenações em âmbito colegiado se tornam inelegíveis. Esse é o caso em que se enquadra no momento o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Então o assunto estaria encerrado ou há alguma brecha prevista pela Lei da Ficha Limpa que possa garantir a participação dele no processo eleitoral?
Não gosto da palavra brecha nesse caso. Ocorre que a lei prevê propositalmente um sistema de garantias para evitar que haja o afastamento da campanha de alguém que ainda possar ser inocentado. Isso faz parte da nossa matriz constitucional e foi incorporado na Lei da Ficha Limpa, por meio de um dispositivo que prevê expressamente a possibilidade da concessão de uma medida liminar para autorizar a candidatura.
O mero direito de recorrer é a garantia da participação?
Não. A matriz da Ficha Limpa é essa, acabar com essa elegibilidade automática do recorrente. Daquele que ainda tem um recurso. É essa a inovação que a Lei da Ficha Limpa traz ao cenário político brasileiro. Antes, tudo se dava de forma automática. Se houve recurso contra a decisão condenatória, já basta para manter a elegibilidade. Agora não mais. A Lei da Ficha Limpa veio para estabelecer as condições para que alguém possa se apresentar como candidato.
Ou seja, para mudar o caráter de ter “ficha suja” o candidato precisa obter uma decisão suspendendo a condenação do órgão colegiado?
(Uma decisão) apenas para fins eleitorais. Não revoga, nem substitui a sentença condenatória. Ela apenas admite que havendo a probabilidade de sucesso de um recurso, é necessário e adequado permitir a candidatura. Mas isso é um juízo feito pelo relator. A diferença do sistema anterior é que isso operava de forma automática. Uma vez interposto o recurso, isso já era suficiente para garantir a candidatura. Agora não é mais assim. O simples fato de interpor o recurso não garante a elegibilidade.
Conseguindo essa autorização, se ele vencer a eleição e for condenado depois, ele perde o mandato?
É. Essa medida liminar, ela possui contorno muito típico do direito eleitoral. Uma vez concedida, essa medida provoca dois efeitos: o primeiro é o de determinar ao tribunal responsável pelo julgamento do recurso que priorize esse julgamento. A lei é tão clara que estabelece que o feito ganhará prioridade sobre todos os demais, com exceção do mandado de segurança e do habeas corpus. Porque parte-se do pressuposto que a sociedade tem interesse em ver resolvida aquela questão.
Então a liminar garante a participação mas não garante a investidura no cargo?
Esse é um outro aspecto da liminar. O primeiro é esse de garantir que o recurso será julgado com prioridade. O segundo aspecto é de que se trata realmente de um ato provisório. O fato de alguém participar da eleição utilizando uma liminar dessa natureza não lhe dá garantia alguma. Uma pessoa pode ultrapassar todas essas etapas, ter seu nome na urna, ser votado, ser diplomado candidato e ser empossado, e só depois, caso confirmada a condenação, ver tudo isso revogado e destituído. Isso a Lei da Ficha Limpa diz expressamente. Antigamente a lei deixava a salvo aquele que participava das eleições protegido por alguma liminar, depois, mesmo que essa liminar viesse a ser revogada, o mandato era inquestionável. Agora não mais. Com a Lei da Ficha Limpa, dá-se uma autorização provisória, mas sem garantia nenhuma de exercício do mandato. Só há uma maneira para o condenado por um órgão colegiado recobrar definitivamente sua elegibilidade: obter a sua absolvição no âmbito criminal. Ele precisa que a condenação seja desconstituída, pela absolvição, pela anulação do processo ou pela prescrição da pretensão punitiva. Esse três elementos fazem restituir a elegibilidade na íntegra. Mas não há outro caminho.
Quando a lei foi aprovada, apesar de críticas pontuais, pareceu que havia um consenso sobre o texto. Agora estão surgindo novas críticas. O que o senhor acha que mudou, se a Lei é a mesma?
Olha, me preocupa muito fortemente o grande número de pessoas que estão na política e que enfrentam pesadas demandas judiciais. Só no Senado são 23, dos 81 senadores, que podem estar às portas de uma situação como essa. E com isso nasce uma força poderosa de manutenção do regime, tal qual ele sempre foi. Não se trata de uma lei qualquer, ela realmente contagiou a sociedade brasileira. Fizemos uma campanha de baixo para cima, percorremos escolas, igrejas, às vezes indo de casa em casa para conversar com as pessoas. E nós queríamos colocar em debate esse tema: É válido colocar como líder político alguém que ostente um passado duvidoso, sombrio? Como mote para esse debate nós usamos esse projeto de lei, que contagiou toda a sociedade brasileira.
O senhor teme que a lei possa ser alterada, em função dessa quantidade de políticos investigados?
Não temo. Nós somos vigilantes, temos um acompanhamento inclusive, pelo Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE). Acompanhamos no Congresso cada projeto de lei que diga respeito à Ficha Limpa. Já houve tentativas mas essas tentativas foram barradas por recursos imediatos. Porque a sociedade brasileira protege a Lei da Ficha Limpa. Toda vez que há o menor atentado contra ela, há reação social.
O caso do ex-presidente Lula é simbólico?
O caso de Lula vai demonstrar como essa lei não foi feita para prejudicar ninguém em particular. Ela foi feita para estabelecer padrões do mínimo que se pode esperar de qualquer candidato. Esse episódio servirá para tirar qualquer dúvida sobre o que é de fato a Lei da Ficha Limpa. É natural que, sendo o ex-presidente Lula um dos brasileiros mais populares, a sociedade poderá participar de um debate sobre a lei e verá que nada tem a ver com o que seus poucos e poderosos detratores lhe atribuem. (…) A Lei da Ficha Limpa não insere ninguém automaticamente na condição de inelegível. Ela se vale de dados que são produzidos por outros âmbitos da institucionalidade, como por exemplo os tribunais criminais. Então ninguém fica inelegível por força apenas da Ficha Limpa. Então se alguém quiser discutir a justiça de alguma condenação, deve tirar seus olhos da Ficha Limpa e deve atentar para o lugar onde o julgamento condenatório está acontecendo.
O senhor avalia que o cenário é favorável ao ex-presidente Lula?
Eu diria que o ex-presidente tem uma missão de demonstrar justamente isso, essa plausabilidade do recurso, a probabilidade de êxito. E se ele fizer isso ele terá grande probabilidade de obter a liminar e participar das eleições. Agora, por outro lado, é bom frisar que a liminar pode ser negada. O relator, se ele não se convencer da relevância dos fundamentos ele pode indeferir a liminar, e sem essa liminar, não poderá haver participação eleitoral.
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