Faxineira é ‘dona’ de empresa de armas e munições que movimentou R$ 15 mi no Maranhão
Da Folha de São Paulo – Quem vê o carregador Clayton Batista da Silva, 45, transportando frutas e verduras em um carrinho de mão pelo bairro Mercadinho, região central de Imperatriz (MA), não imagina que ele conste como dono de duas empresas de armas e munições que movimentaram cerca de R$ 3,5 milhões em cinco anos.
Até março deste ano, nem ele mesmo imaginava.
Silva, diz a polícia, tomou conhecimento da existência das empresas em seu nome somente quando a Polícia Civil e o Ministério Público do Maranhão deflagraram operação contra organização criminosa suspeita de despejar cerca de 60 toneladas de munição no mercado ilegal do Norte e Nordeste do país.
O grupo, segundo aponta investigação iniciada em 2019, seria supostamente liderado pelos irmãos gêmeos Wander e Wanderson Israel Batista Carvalho, 35, com a participação de um sargento do Exército e de um representante regional da CBC (Companhia Brasileira de Cartuchos).
O suposto esquema utilizava, segundo a investigação, oito empresas (sendo sete de munição) abertas em nome de laranjas para aquisição de armas e munições de forma legal –inclusive junto à CBC, dona da Taurus– que acabavam repassadas ao mercado clandestino.
O material, comercializado a preço bem mais alto que o praticado, chegava aos pontos de venda de ao menos três estados –Maranhão, Piauí e Pará– em caminhões com fundo falso, formando, segundo polícia e Ministério Público, um dos maiores comércios ilegais de armas de fogo e munições do país.
Silva é uma das cinco pessoas que tiveram os dados usados pelos gêmeos para abertura das empresas de fachada, aponta a investigação. Na lista dos supostos laranjas está ainda Francisca Maria Gomes de Morais, 61, que, embora tenha salário estimado em R$ 300 mensais como faxineira, comprou mais de R$ 15 milhões em produtos controlados, entre 2018 e 2020, com a empresa Cangaço Materiais para Caça.
Ao contrário de Silva, que desconhecia as empresas em seu nome, Francisca tinha conhecimento da situação, segundo a polícia. Tanto que foi presa em 2017 durante operação do Exército e da Polícia Civil em uma loja de armas que pertence aos irmãos Carvalho.
Na operação de março deste ano, a faxineira tentou fugir de casa ao perceber a chegada de equipes da polícia e do Ministério Público. Teria pulado o muro dos fundos para esconder documentos e celulares na casa do vizinho -que avisou as autoridades e o material acabou apreendido.
O suposto esquema foi mantido, de acordo com a investigação maranhense, graças à participação do representante da CBC da região, Itabajara Índio do Brasil. Ele teria mantido o fornecimento da mercadoria às empresas ligadas aos gêmeos, mesmo sabendo que a maior parte delas estava em nome de laranjas.
Segundo o inquérito, trata-se do único representante da companhia nos estados do Maranhão, Tocantins e sul do Pará. “A organização criminosa não funcionaria sem o seu aval, eis que ele se beneficia do alto valor das compras dos gêmeos para receber comissão que varia de 1% a 4%”, diz relatório.
Como os gêmeos compravam cerca de R$ 1 milhão ao mês em munições, a polícia estima que Itabajara lucrava cerca de R$ 25 mil mensais de comissão.
Ouvido pela polícia, o representante da CBC disse que se preocupava em verificar se os documentos, como o CR (certificado de registro), estavam válidos para realizar compras, conforme prevê a legislação.
Para a polícia e a Promotoria, porém, trata-se da chamada teoria da cegueira deliberada. “Vende para pessoas jurídicas constituídas pelos irmãos gêmeos, em nome de terceiros, sabendo Itabajara que isso era realizado porque eles tiveram seus CRs anteriores cassados”, diz trecho do relatório.
O vendedor foi indiciado como integrante da organização criminosa porque, segundo a polícia, não é um mero vendedor e tinha a obrigação de ajudar na fiscalização.
Polícia e Promotoria também suspeitam da participação do sargento do Exército João Carlos Vieira no suposto esquema. Ele repassaria informações privilegiadas à organização criminosa, como vazamento de datas de operações. No celular apreendido de Wallinson Carvalho, irmão dos gêmeos, foram encontradas conversas entre ele e Vieira.
Como as ações do sargento foram consideradas possíveis crimes militares, ele não foi indiciado e as informações foram encaminhadas para a Polícia do Exército, que abriu um IPM (Inquérito Policial Militar) para apurar as suspeitas.
Foram indiciadas, até agora, dez pessoas, entre elas Francisca e os irmãos Carvalho. Os gêmeos Wander e Wanderson chegaram a ser presos na operação de março deste ano ao serem flagrados com uma série de armas de fogo em uma propriedade rural.
Os dois são CACs (caçador, atirador e colecionador), mas estavam com armamento em local não autorizado. Eles conseguiram um habeas corpus e respondem em liberdade.
Os suspeitos foram indiciados por crimes como organização criminosa, contra o Estatuto do Desarmamento, lavagem de dinheiro e falsidade ideológica. Os autos aguardam, agora, manifestação da Promotoria que poderá solicitar arquivamento, mais diligências ou denunciar os acusados.
As investigações contra a suposta organização criminosa foram conduzidas pelo Gaeco (Grupo de Atuação Especial no Combate às Organizações Criminosas) do Ministério Público e pelo DCCO (Departamento de Combate ao Crime Organizado), da Polícia Civil, todos do Maranhão.
A Folha tentou contato por telefone durante esta passada com o carregador Clayton Silva, mas não teve resposta até a publicação deste texto.
OUTRO LADO
Os advogados dos gêmeos Wander e Wanderson Carvalho afirmam que a investigação traz uma visão “unilateral”, sem que tivessem a oportunidade de esclarecer oral e documentalmente, “as apressadas conclusões que redundaram na formulação do indiciamento”.
“Inobstante, seguiremos na forma do devido processo legal, sempre invocando o direito que a ele assiste, assim como a todo cidadão brasileiro, no sentido de comprovar a legitimidade e correção de suas condutas, tendo presumida sua inocência até que sobrevenha sentença penal condenatória com trânsito em julgado”, diz nota assinada pelos advogados Daniel de Faria Jerônimo Leite e Tharick Santos Ferreira.
O advogado de Francisca, Marcos Vinícius de Moura Santos, diz, por meio de nota, que “em que pese seu indiciamento pela Polícia Civil, a defesa aguarda a manifestação do Ministério Público, pois até o momento não há ação penal”. Ele não comenta as suspeitas apontadas pela investigação.
Essa também é a mesma resposta apresentada por Moura Santos sobre as acusações contra seus outros clientes nesse inquérito: Wallison, irmão dos gêmeos, e de Francisco Gomes de Morais, filho de Francisca e apontado como suposto laranja.
O advogado também defende o sargento Vieira. Sobre as acusações contra o militar, ele diz que seu cliente permaneceu no Exército brasileiro por 27 anos e “jamais respondeu qualquer processo administrativo ou Inquérito Policial Militar.
“Sobre o IPM que tramita no EB, foi ouvido na qualidade de testemunha, se colocando à disposição das autoridades competentes.”
Procurado pela Folha, Itabajara Índio do Brasil diz que foi citado ilegalmente na investigação da organização criminosa e que se defenderá disso, pois nunca teve envolvimento com ilegalidades.
Inicialmente, o representante da CBC chegou a dizer que não havia sido indiciado. Mas, ao receber da Folha cópia do documento de indiciamento, afirmou que sua versão foi dada em depoimento à Polícia Civil, em que disse seguir a legislação em suas vendas.
A CBC afirma que ainda mantém contrato de representação comercial com a empresa Matopá Comércio e Representação, cujo sócio é o Itabajara, e que todas “as vendas realizadas pela CBC cumprem rigorosamente a lei”, incluindo representantes.
“Informamos ainda que a CBC sempre atua em plena colaboração com as autoridades competentes em investigações que apurem eventuais desvios ou o uso ilícito de seus produtos”, finaliza.
O Comando Militar do Norte informa que Luís Carlos Vieira é um militar da reserva e estava contratado temporariamente. “Após as denúncias, foi afastado da função. Foi instaurado um Inquérito Policial Militar para apurar a suspeita de crime. A Instituição não compactua com desvios de conduta de seus integrantes e apoiará as autoridades no esclarecimento dos fatos.”
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