Entenda os recados de Moro no discurso em que anunciou a saída do governo Bolsonaro
Ao pedir demissão do cargo de ministro da Justiça, Sergio Moro elencou uma série de divergências e acusações para sair do governo. Ele afirmou que o presidente Jair Bolsonaro queria interferir na Polícia Federal ao insistir na troca do diretor-geral da instituição, Maurício Valeixo.
Moro citou ainda “preocupação” de Bolsonaro com inquéritos em curso no Supremo Tribunal Federal (STF) – que já aceitou, por exemplo, aberturas de investigações contra um suposto esquema de fake news para atacar autoridades e sobre a organização de manifestações contra a democracia, no último domingo. As duas investigações estão sob relatoria do ministro Alexandre de Moraes. Moro também negou ter assinado a exoneração de Valeixo, ao contrário do que aparece em Diário Oficial e do que foi afirmado pelo Planalto.
Confira os principais recados no discurso de Moro:
1– PT respeitou autonomia da Polícia Federal no auge da Lava-Jato
Durante a coletiva, o ministro reconheceu que houve autonomia da Polícia Federal durante as investigações da Operação Lava-Jato, deflagrada em março de 2014, ocasião em que atuou como juiz da 13ª Vara Federal de Curitiba e foi responsável pelos processos da operação. Na época, o governo Dilma Rousseff estava no centro das investigações do megaesquema de corrupção na Petrobras. Diretores da estatal e ministros importantes da gestão petista foram alvos de fases das investigações.
– Foi garantida a autonomia da Polícia Federal durante esses trabalhos de investigação. É certo que o governo na época tinha inúmeros defeitos, aqueles crimes gigantescos de corrupção. Mas foi fundamental a manutenção da autonomia da PF para que fosse possível realizar esse trabalho – disse Moro.
2– Bolsonaro confirmou que queria ‘interferência política’ na PF
Moro revelou que não houve explicação por parte de Bolsonaro sobre o motivo para a troca no comando da Polícia Federal e que o presidente tinha como objetivo “colher relatórios de inteligência”, ao colocar alguém de sua confiança no cargo.
– Presidente me disse mais de uma vez que ele queria ter uma pessoa do contato pessoal dele [na Polícia Federal], que ele pudesse ligar, colher relatórios de inteligência. Realmente não é o papel da Polícia Federal prestar esse tipo de informação. As investigações têm que ser preservadas – enfatizou o ministro na coletiva.
Moro contou que disse a Bolsonaro que a mudança no comando da PF seria uma “interferência política”. Bolsonaro respondeu que “seria mesmo”, revelou o ministro. Moro disse ainda não ter “vocação para carbonário” no momento em que explicava, em sua entrevista coletiva, que tentou orientar Bolsonaro a nomear para a direção-geral da PF um quadro técnico respaldado pela instituição, como forma de evitar uma crise em plena pandemia do coronavírus. Moro deu a entender que, embora tivesse sugerido nomes como o atual diretor-executivo da PF, Disney Rossetti, Bolsonaro queria uma escolha sem ser pautada por critérios técnicos.
– Conversei com o presidente ontem (quinta-feira) e ele confirmou que seria uma interferência política. Eu disse que teria impacto negativo e, para evitar uma crise durante a pandemia, não tenho vocação para carbonário, eu sinalizei a substituição por alguém que demonstrasse uma continuidade. Essas questões não são pessoais e têm que ser resolvidas tecnicamente. Fiz a sinalização, mas não obtive resposta – afirmou Moro.
3– Interesse de Bolsonaro em superintendências da PF
Moro citou ainda que seu desagrado com a postura de Bolsonaro não se limitou à insistência do presidente pela substituição do diretor-geral Maurício Valeixo, mas também de superintendentes regionais da Polícia Federal – especificamente, segundo o ministro, no Rio de Janeiro e em Pernambuco. Moro afirmou, durante a entrevista coletiva, que indicações políticas em superintendências regionais da PF comprometem o combate à corrupção, e frisou que a atribuição das nomeações de superindententes era apenas do diretor-geral.
– O problema é que nas conversas com o presidente, havia intenção de trocar também superintendentes. Não só o diretor-geral. No Rio de Janeiro, em Pernambuco, sem que me fosse apresentado uma razão ou uma causa para essas substituições – disse Moro.
A superintendência da PF no Rio apurou, por exemplo, suspeitas na evolução patrimonial do senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ), em investigação originada a partir do compartilhamento de dados do Coaf. O caso se relaciona, por sua vez, com o inquérito sobre rachadinha envolvendo o antigo gabinete de Flávio na Assembleia Legislativa do Rio. Este inquérito é conduzido a nível estadual, pelo Ministério Público do Rio. Bolsonaro já criticou publicamente esta investigação.
– A partir do segundo semestre do ano passado, passou a ter uma insistência do presidente para a troca do comando da PF. Isso, inclusive, foi declarado publicamente pelo presidente. Houve primeiro o desejo de trocar um superintendente da Polícia Federal do Rio de Janeiro – lembrou Moro.
4– Reação da PF a tentativas de interferência
Apesar de reconhecer que governos anteriores respeitaram a autonomia da PF, Moro lembrou que houve uma tentativa de interferência no órgão durante a gestão do ex-presidente Michel Temer. Na ocasião, Fernando Segovia foi nomeado para a diretoria da PF em escolha pessoal de Temer, após indicação de aliados do presidente no MDB investigados pela Lava-Jato.
Ao citar a interferência, Moro lembrou que a própria Polícia Federal reagiu à época, sinalizando que a instituição tem condições de se mobilizar contra ações políticas externas.
– Houve até um episódio em que foi nomeado um diretor no passado com intuito de interferência política e não deu certo. Ficou pouco mais de três meses. A própria instituição rejeitou essa possibilidade – recordou Moro.
Durante os 90 dias em que permaneceu no cargo, Segovia foi alvo de polêmicas e chegou a sugerir um arquivamento da investigação contra o presidente no caso sobre irregularidades na edição de um decreto sobre portos iniciado a partir de delações premiadas de executivos da empresa J&F. Em meio ao desgaste dentro da própria corporação, o então diretor foi demitido.
5– Bolsonaro tinha “preocupação com inquéritos em curso” no STF
Na entrevista coletiva em que anunciou que deixa o governo, Moro declarou que Bolsonaro também acusou “preocupação” com casos em andamento no Supremo Tribunal Federal (STF).
– O presidente também me informou que tinha preocupação com inquéritos em curso no Supremo Tribunal Federal e que a troca também seria oportuna da Polícia Federal. Por esse motivo, também não é uma razão que justifique a substituição. Até é algo que gera uma grande preocupação – afirmou Moro.
Moro não detalhou quais inquéritos seriam alvo da preocupação de Bolsonaro. No último fim de semana, o presidente participou de um ato a favor do AI-5 em Brasília que entrou na mira do STF e da Polícia Federal.
Após um pedido enviado pelo procurador-geral da República, Augusto Aras, o STF autorizou a abertura de inquérito para investigar atos a favor do AI-5. Embora não seja citado no pedido de Aras, Bolsonaro chegou a fazer um discurso para seus apoiadores durante o ato.
6– “Não assinei”, disse Moro sobre ato em Diário Oficial
Embora o ato em Diário Oficial que oficializou a demissão de Maurício Valeixo traga o nome do ministro da Justiça, Moro negou que tenha assinado a exoneração. Moro também afirmou que não foi comunicado previamente pelo Planalto de que a exoneração de Valeixo entraria na edição desta sexta-feira do Diário Oficial.
– A exoneração que foi publicada fiquei sabendo pelo Diário Oficial, não assinei esse decreto – afirmou Moro.
Na manhã desta sexta-feira, antes da coletiva de Moro, a Secretaria de Comunicação da Presidência (Secom) publicou o ato do Diário Oficial com a exoneração de Valeixo, incluindo o nome do ministro da Justiça entre as assinaturas – assim como o nome do presidente Jair Bolsonaro. Na publicação, em suas redes sociais, a Secom afirmou que Valeixo havia se exonerado “a pedido” e classificou como “fake news” qualquer informação distinta. Moro, porém, rebateu a versão da Secom, afirmando que “isto não é verdadeiro”, e interpretou a exoneração de Valeixo sem ser comunicada previamente ao ministro da Justiça como uma sinalização de que Bolsonaro não queria o próprio Moro no cargo.
– Para mim, esse último ato é uma sinalização de que o presidente me quer fora do cargo. Essa precipitação da realização da exoneração, não vejo muitas justificativas – disse Moro
7- Futuro longe da magistratura e ‘à disposição do país’
Na entrevista coletiva, Moro afirmou que descansará após oficializar sua saída do governo Bolsonaro e lembrou que não pode retornar à magistratura, já que precisou abandonar a carreira para assumir o cargo de ministro da Justiça.
– Infelizmente é um caminho sem volta, mas, quando assumi, sabia dos riscos. Vou descansar um pouco. Esses 22 anos (de magistratura) foram de muito trabalho, em especial, em todo esse período da Lava-Jato, praticamente não tive descanso e nem durante o exercício do cargo de ministro da Justiça e Segurança Pública. Vou procurar mais adiante um emprego, não enriqueci no serviço público, nem como magistrado, nem como ministro, e quero dizer que, independentemente de onde esteja, sempre vou estar à disposição do país para ajudar onde quer que seja – disse Moro.
Na coletiva, Moro também voltou a negar que tenha assumido o cargo no governo Bolsonaro com a promessa de que uma posterior indicação para assumir um posto de ministro do STF. Moro não declarou se tem intenção de futuramente assumir uma vaga no Supremo, cuja indicação é prerrogativa do presidente da República. Moro também se colocou à disposição para “ajudar nesse período da pandemia”.
– Se puder ajudar nesse período da pandemia com outras atitudes, enfim, sempre respeitando o mandamento do Ministério da Justiça e Segurança Pública nessa gestão que é fazer a coisa certa sempre – afirmou.
8– ‘Ofensivo’ o método usado na exoneração de Valeixo
Moro também manifestou desconforto com o método usado pelo Planalto para conduzir a demissão de Valeixo. Segundo o agora ex-ministro da Justiça, Valeixo recebeu um telefonema na noite de quinta-feira para ser comunicado, mesmo sem ter apresentado pedido de exoneração, que sua saída seria publicada como “exoneração a pedido” na edição do Diário Oficial desta sexta-feira, o que acabou ocorrendo.
Além de ressaltar que Valeixo não teria pedido demissão de maneira “formal”, Moro criticou ainda o tom do contato feito com o então diretor da PF na noite de quinta, sem especificar quem foi o interlocutor desta ligação.
– Em nenhum momento o diretor da Polícia Federal apresentou pedido de exoneração. Ontem (quinta-feira) à noite ele disse que recebeu uma ligação de que sairia com “exoneração a pedido” e perguntando se concordava. Ele disse: “Vou fazer o quê?” Mas foi isso, o pedido não foi feito de maneira formal. Achei que isso foi ofensivo – declarou Moro. O Globo
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