Em artigo, Sarney fala sobre as lágrimas de Lula
O Padre António Vieira, em Roma, diante da rainha Cristina da Suécia, defendeu que o mundo era mais digno das Lágrimas de Heráclito que do Riso de Demócrito. Argumentava o já idoso jesuíta: “Quem conhece verdadeiramente o mundo há de chorar; e quem ri, ou não chora, não o conhece.”
Falando a parlamentares em sua primeira visita a Brasília depois da eleição, o Presidente Lula disse que consideraria justificada a sua existência se todas as crianças brasileiras fizessem, ao fim de seu governo, três refeições diárias — e chorou.
As lágrimas de Lula revelam a sua história, a de um homem do povo que, chegando à Presidência da República, felizmente não deixa de ser um homem do povo, que conhece, nas próprias entranhas, a imensa tragédia que atinge os brasileiros mais pobres.
Foi com essa mesma visão que adotei, quando Presidente da República, o lema de “Tudo pelo Social”. A missão do Estado, por meio dos diferentes poderes e governos, é a promoção do bem comum. Muito antes, na Câmara dos Deputados, lancei o movimento que o Castelinho — nosso grande analista político — chamou de “Bossa Nova”, abrindo na UDN uma vertente de “desenvolvimento sim, mas com justiça social”.
Relembro os objetivos da República instituídos pela Constituição: “I – construir uma sociedade livre, justa e solidária; II – garantir o desenvolvimento nacional; III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.”
Na grande divisão que se produziu no Brasil ao longo dos anos, há muito esquecimento — inocente ou voluntário — desses dogmas que deveriam estar gravados em todos os corações. Esses objetivos faltam nas nossas constituições anteriores. No caso americano, no entanto, eles constam tanto da Declaração de Independência, redigida por Jefferson — o direito à vida, liberdade e busca da felicidade —, como nos Artigos da Confederação, sua primeira carta constitucional: “para sua defesa comum, a segurança de suas liberdades, e o seu mútuo e geral bem-estar”; está no plano de Madison para a nova constituição e, naturalmente, nesta mesma. Na tradição francesa, sua contemporânea, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão institui os princípios de “liberdade, fraternidade, igualdade”, que serão retomados no preâmbulo da Constituição da Quinta República, feita por Michel Debré sob o comando de De Gaulle. Também La Pepa, a constituição feita em Cádis que teve tanta importância no Ocidente, diz que “o objeto do Governo é a felicidade da Nação, posto que o fim de toda sociedade política não é outro que o bem-estar dos indivíduos que a compõem”.
Mas voltemos ao Brasil e a Lula. Sempre tive uma grande vergonha de chorar em público. Chorei, e muito, com a garganta, trancando a emoção, amargando-a no peito. Chorar, com lágrimas nos olhos, na emoção incontida, como Lula chorou, mostra a força que a junção do coração com a razão tem sobre o ser humano. Pois é evidente que o sentimento de solidariedade move a ação política do Presidente, mostrando a nobreza de sua opção de vida; mas desejar aplacar a fome das crianças, dos pobres, dos humildes, dos negros, dos nordestinos é também um ato de razão — e atende, além de aos objetivos do Estado brasileiro, a um dos princípios essenciais da política, que é a responsabilidade com a integridade do País, da União, da Nação. Sem que todos os brasileiros possam viver como irmãos, repartindo o prato, criando e compartilhando prosperidade, o Brasil se desintegrará — há tempos está se desintegrando, e este é um triste fato que vemos com nossos olhos e que nos devia levar, a nós também, às lágrimas.
Sempre digo aos jovens que desejam entrar na política que eles se façam uma pergunta fundamental: “Para quê?” Só há uma resposta válida, a que foi a minha diretriz de vida: “Para construir a justiça social.” Continuo acreditando nela.
José Sarney, ex-presidente
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