Dra. Sandra, a juíza que parou o WhatsApp
ALEXA SALOMÃO – O ESTADO DE S.PAULO
Na última quarta-feira, a juíza Sandra Regina Nostre Marques, da 1.ª vara criminal do Fórum de São Bernardo do Campo, em São Paulo, estarreceu usuários de novas tecnologias no mundo. A juíza havia determinado que o Facebook, que controla o aplicativo WhatsApp, liberasse as mensagens de um investigado por crimes de tráfico de drogas ligado ao Primeiro Comando da Capital – o PPC, como é conhecida a organização criminosa. Como foi ignorada pelo Facebook, a juíza determinou o bloqueio do WhatsApp para todos os 100 milhões de usuários, em todo o Brasil, por 48 horas. Criou-se um rebuliço internacional.
No meio judicial de São Bernardo, porém, não houve tanta surpresa assim. Odiada por defensores criminais, amada por policiais, folclorizada pelos presos, temida e respeitada pelos funcionários do Fórum, a Dra. Sandra, como é tratada, ficou conhecida justamente por levar ao extremo o limite da lei em busca de justiça.
“Tenho ouvido todo tipo de brincadeiras e comentários maldosos sobre a juíza Sandra, por causa da história do WhatsApp, mas a verdade e que ela é admirada aqui por ser uma combatente implacável do crime organizado”, diz advogado criminal Luís Ricardo Vasques Davanzo, presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) de São Bernardo do Campo. Apesar do tom cordial, Davanzo está na lista dos incontáveis advogados que já tiveram embates com a juíza por discordar de suas táticas.
Na 1ª vara, comandada pela juíza Sandra, vão parar os processos de crimes que não têm relação com a vida: furto, roubo, tráfico, prostituição, crime organizado de maneira geral. Os julgamentos dessas matérias conduzidos por ela, dizem, tem 99,9% de chance de condenação, ainda que a acusação seja leve. As penas, por sua vez, são determinadas pelo teto previsto pela lei. Se tiver a opção de fazer a condenação entre três e oito anos, costuma cravar oito. Também é conhecida por apertar o réu. Se identificar contradição no depoimento, encara o acusado e pergunta: “Você quer que eu acredite nessa história da carochinha?”
Com ela, contam, não há risco de clemência: na dúvida, não solta, manda prender. “Se alguém comete um furto simples, aqui em São Bernardo, a gente já avisa que o caso é fácil, não vai preso – desde que não caia na 1ª vara da Dra. Sandra”, explica um dos advogados que aceitaram falar com o Estado sem ter o nome revelado para não se indispor com a juíza.
Os advogados que convivem com ela há anos não poupam sarcasmos na hora de defini-la. “Como ela acha que está salvando o mundo, leva a lei ao extremo: caso descubra que bebês estão roubando mamadeiras, vai defender a redução da idade penal para dois anos”, diz um deles. Mas até esses desafetos, de certa forma, a admiram. “Para nosso desespero, tecnicamente é boa de caneta e a maioria das discussões são bem embasadas, dá muito trabalho para a gente”, diz outro advogado.
A juíza também tem fama de não ter medo de nada ou de ninguém. “Eu tiro o chapéu porque ela não verga: quando o bandido faz cara de mau, não baixa os olhos, coisa que outras juízas não conseguem”, diz uma antiga funcionária do Fórum. Quando vai julgar uma quadrilha, não gosta de separar os acusados, como outros juízes costumam fazer. “Podem ser quatro, 10, 15, coloca todos juntos, faz com que eles se entreguem entre eles e encara todos”, diz outra funcionária do Fórum. A polícia, quando precisa de decisões mais enérgicas, faz o possível para puxar o caso até a jurisdição de São Bernardo. “Há um tempo, conseguiram transferir um caso do PCC de Santo André para cá porque sabem que a Dra. Sandra não vacila”, diz um funcionário do Fórum.
Trator. Se ela tem uma meta, “segue adiante como um trator esteira, desses que não tomba nem quando cai no buraco”, diz outro advogado. Davanzo, da OAB, conta que, há tempos, a juíza quer criar uma vara especializada em tratar de casos de violência doméstica. Foram juntos defender a ideia na presidência do Tribunal de Justiça. “Recebemos um não e ela podia ter sido política, ficado quieta, mas não: ficou ali insistindo. Ela é assim.”
Entre os colegas e funcionários do Fórum é conhecida como pessoa de poucos amigos. Chega cedo. Sai tarde. Almoça exatamente por uma hora. Nem um único funcionário sob suas ordens quis falar com a reportagem. “Eles sabem que se saírem da linha, ela assina a exoneração sem piscar”, diz o funcionário de outra área. Pessoas que já trabalharam com ela contam que não é de sorrisos, fazer brincadeiras ou dar intimidade. “A piada máxima que ouvi dela foi, num ano de inverno forte, que morreríamos de frio”, conta outra funcionária que trabalhou próxima à juíza.
Sandra Marques também não tem vida social. Não é de frequentar rodinha de juízes, ir a jantares ou eventos de entidades. No ano passado, a Câmara da cidade quis lhe fazer uma homenagem. Recusou. Não quer aparecer em público, nem ser fotografada. Há muitos relatos de que foi jurada de morte, recebe ameaças e anda com escolta.
Os presos criaram histórias horripilantes e traumáticas na tentativa de justificar o rigor da juíza. O bom tom impede que a maioria seja narrada aqui. Na mais leve, ela estaria vingando um familiar que, vítima de sequestro, teria tido o dedo amputado e enviado a ela para forçar o pagamento do resgate. Na mais divertida, a juíza Sandra seria dona da empresa de marmitex que fornece refeições para presos e estaria condenando a rodo para elevar as vendas. “Tudo mentira”, diz um advogado.
Questionamentos. A busca extrema por justiça, porém, faria com que a juíza cometesse erros. Há muitas histórias sobre inocentes que teriam ido parar na cadeia. “Juízes condenarem inocentes é mais comum do que se possa imaginar, mas a incidência com ela tende a ser maior porque, diferentemente da maioria dos juízes, que absolvem em caso de dúvida, ela manda prender”, diz Davanzo da OAB.
Quem questiona o que chamam de “sua pressa para punir” pode se indispor seriamente com ela. No site da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo, há o relato oficial sobre a repercussão de uma das pendengas. Ao participar da defesa de um réu julgado na 1ª vara da juíza Sandra, o procurador do Estado Roberto Ramos apontou irregularidades em um documento do inquérito policial que deu origem à denúncia contra o seu cliente. Segundo ele, havia divergência entre as assinaturas dos policiais militares em documentos utilizados como provas. Ramos argumentou, assim, pela ausência de provas suficientes para a condenação. Na hora de dar a sentença, a juíza Sandra discordou com veemência. Qualificou de “levianas” as argumentações de Ramos. Para Sandra Marques, elas estariam a “beirar as raias da denunciação caluniosa”.
Com base nessa avaliação, a juíza mandou tirar a peça de defesa do processo e determinou que fosse encaminhada à Delegacia Seccional local, para ser utilizada como prova para a eventual instauração de inquérito policial contra o procurador Ramos. O procurador reagiu na Justiça. Entrou com um habeas corpus para trancar o eventual inquérito policial e também conseguiu uma liminar para impedir que fosse processado. Para arrematar, Ramos solicitou e conseguiu uma sessão de desagravo no Conselho da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo, para reforçar a defesa de sua honra. A reportagem entrou em contato com a assessoria de imprensa da procuradoria para tentar entrevistar Ramos, mas às véspera do recesso da Justiça, não foi localizado.
Recíproca. A juíza Sandra é conhecida por respeitar a polícia e auxiliar como pode no trabalho das corporações, tanto civil quanto militar. E a recíproca é verdadeira. “A Dra. Sandra é cordial, simpática, nos ouve com atenção, bem diferente da maioria dos juízes que nem sabe que a gente existe”, diz Sebastião José da Silva, o Tião, chefe do 3º Departamento de Polícia Civil de São Bernardo, com quase 20 anos de atuação em diferentes áreas da polícia. “Ela não fica em cima do muro como outros e fornece os instrumentos para a gente fazer o nosso trabalho, sempre dentro da lei: no dia em que ela se aposentar, não é a polícia, mas a população que vai ficar sem pai e sem mãe.”
Tião lembra de várias operações que só foram possíveis graças à juíza: prisão de quadrilhas de roubo a banco, entre o ano passado e este, o combate à prostituição infantil no centro da cidade, além da operação que impediu o PCC de levar a cabo a execução de agentes penitenciários porque a juíza Sandra liberou a realização de escutas telefônicas. “As pessoas ficaram fazendo mimimi por causa do WhatsApp, mas se ela pediu, é porque era necessário e teve coragem de fazer”, diz Tião. “O País não estaria esta baderna se em cada comarca houvesse uma Dra. Sandra e um Sérgio Moro (juiz da Lava Jato).”
Estratégia. Na avaliação de Davanzo, Sandra Marques não foi ingênua ou maluca, como muitos disseram nas redes sociais, quando mandou suspender as conversas do WhatsApp. A juíza está no que se considera a base da pirâmide do judiciário, a primeira instância, válida no município de São Bernardo. Suas decisões podem ser abatidas por colegas com raio de atuação e ingerências maiores. Tanto que o previsível ocorreu. Cerca de 12 horas depois, o desembargador Xavier de Souza, da 11ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo, suspendeu o bloqueio.
No entanto, na avaliação de Davanzo, é preciso ter em mente que a canetada da juíza Sandra desencadeou uma acirrada discussão sobre os limites da privacidade e as limitações da lei local que rege os serviços virtuais, o Marco Regulatório da Internet. Milhões de brasileiros, indignados com a suspensão do serviço, debateram o uso do aplicativo, a validade da privacidade, a atuação do judiciário e a postura e a estrutura empresarial do Facebook, que é o controlador do aplicativo.
A juíza mobilizou até o empresário americano Mark Zuckerberg, fundador do Facebook, que redigiu posts sobre a decisão. A medida da juíza de São Bernardo foi notícia em grandes jornais internacionais. Especialistas em direito da área de tecnologia no Brasil formularam teses sólidas para apoiar ou questionar a medida.
A análise do presidente da OAB de São Bernardo sobre toda essa movimentação: “Pelo que eu conheço dela, sabia o que estava fazendo, gostem ou não, as pessoas discutiram os limites e obrigações do WhatsApp e do Facebook: embora antipática, a medida teve um efeito positivo de levantar a discussão e não sabemos o que vai desencadear daqui para a frente.” Procurada pela reportagem, a juíza Sandra Marques não quis dar entrevista.
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