A noite do velho coronel
Por: Chico Viana (médico e vereador de São Luís)
A noite pesa e é densa, pode ser cortada por uma lâmina. Os escassos sonhos se confundem com a realidade, e só o tic-tac de um relógio herdado de alguma igreja antiga, hoje perdida no tempo, carrega moroso tempo nas costas. O sonífero deixou de fazer efeito. Olha para o teto branco. Olha para si. Levanta os braços descarnados, dentro de um pijama maior; sobe, desce, vai de um lado a outro, tentando encontrar resquícios de vigor… nada. Parecem garras na forma, e patas de elefante no peso. Como podem pesar tanto dois braços tão finos? As pernas não respondem ao comando de um cérebro, mal tremem. O esforço é demais. O relógio de cabeceira ainda não chegou às três, o tempo não anda, a sua guardiã prefere as rondas da madrugada. A noite o sufoca. Levanta-se, alquebrado, e consegue se sustentar na beirada da cama. Olha para um lado e para outro, em busca de um amparo que lhe dê alento para que suporte estas três horas que lhe parecem dias. Ali, sozinho, enfrenta todos os dias um momento de verdade, a hora da confissão. Velho e gasto. Abatido pelo natural uso da vida, deprime-se e pergunta-se, até quando? Por que a noite, uma não luz que se apega ao seu lado mais escuro, e lhe faz a vida parecer um suplício, o rebote de uma droga que cada vez exige mais uma dose maior de dia? Olhando para o chão, os minutos passando, de vez em quando um esgar que poderia ser tomado por um arremedo de riso lhe vem ao rosto. É quando se recorda de todos os contemporâneos que já se foram, e o triunfo de havê-los suplantados. Lembra-se que, no dia seguinte, o obituário dos jornais pode trazer-lhe mais alguns triunfos. E é aí que percebe, todos os dias, que as coisas boas de seu passado não amenizam a dor e a solidão. Algum alento ainda se lhe vem do que causou de mal, e aí se perde desfiando todas as lembranças dos males pretéritos cometidos, para encontrar um pouco de refrigero. Às vezes ri mesmo; outras, apenas balança a cabeça, bate com os pés celebrando os seus bons maus atos. São deles que ainda sorve um pouco de força, e esperança. São deles que se alimenta. A peçonha lhe é o elixir da vida eterna. É preciso produzir mais. O que mais dói nestas noites longas é a solidão de sua própria companhia. Não há ninguém, não é nada. É apenas um velho perdido no tempo e se agarrando à vida como se ela lhe fosse eterna. Cadê as pessoas? Os efusivos cumprimentos? As manifestações de respeito e obediência? O poder de decidir, enfim, a platéia que sempre o aplaude nesta ópera bufa, que se torna nada quando deixa o proscênio, recolhe-se na verdadeira ribalta de um leito que incomoda, e de uma noite que não passa? Ah, dia, dia que não vem, sol que não aquece, esta escuridão, e este frio que gela, este medo, esta percepção da deterioração física; enfim, esta certeza de que não pode escapar sempre do encontro com o dia em que a noite lhe será eterna.
A luz do dia é a certeza do acolhimento, e da redenção, e necessita dela tanto quando outros quirópteros necessitam da noite para caçarem seus alimentos, frutas ou sangue,. Eles, homenagens ou tiranias; desprendimento, ou egoísmo; hipocrisia, ou ódio; afagos, e punhaladas; benemerência ou vantagens pessoais, o velho déspota. Alimentos da alma e da carne que cada qual disputa em seu tempo. Não há nada de preestabelecido para o dia seguinte; nenhum ato fora da rotina; tudo é sempre igual. Mas há a luz, é a luz que o dia empresta, assim como a dos holofotes, que faz brilhar o mais fosco dos metais. Não importa se não brilha, mas a luz o projeta e o torna visível, diferente de agora, quando só a si me ver em partes, pensa: afinal, os primeiros raios. Sente que algo se movimenta em si. Levanta-se, vai ao banheiro, e, como de sempre, olha-se no espelho, e se vê como é: os cabelos raros e brancos, a pele macilenta, ressequida e flácida, coberta de manchas senis, a sensação de parecer cada dia menor tal o esforço que faz com os pés para permanecer no reflexo do cristal. Abre a boca, examina a língua saburrosa, desce a pálpebra inferior para ver o violáceo das conjuntivas, desanima-se. Alguém ajuda a vestir-se; afinal, já não pode colocar meias nem sustentar-se em uma só perna quando a outra é calçada. Os dedos tremem quando tenta abotoar o punho, ou o colarinho. Falta-lhe forças para apertar o cinto. No desejum, engole rápido uma papa de aveia, e minuciosamente confere os comprimidos que ingerem, pela doença, pela forma, cor e quantidade. Eram treze. Por sua conta, acrescentou mais uma, uma vitamina que faz sucesso nos Estados Unidos; agora são quatorze. É bom não duvidar da sorte, ou não acreditar no azar. Ele ainda não está triste, e inquieto, mas percebe-se um nítido ânimo quando o telefone toca, e ele atende. A voz se torna cada vez mais firme, o olhar mais implacável e atento, a postura mais firme, e erecta, os passos já não rastejam no assoalho. No obituário, encontra mais motivo para um dar boas vindas ao dia. Morre mais um colega e, vejam só, muito mais novo do que eu, de câncer de estômago. Coitado, mas a vida continua, fala com seus botões. E lembra. ‘Preciso ver aquela dorzinha no estômago que me aborda de vez em quando; aliás, já está na época de meu chek-up mensal. Com doença não se brinca. Enfim, chega o carro oficial, com bandeirolas, segurança. Vai ao espelho, ajeita o nó da gravata, retoca os cabelos e bigodes agora retintos e, a passos largos e firmes, sai para o carro assoviando, novo em folha. No interior – não precisa mandar -, o motorista já está com o cd no ponto; apenas aumenta em volume quase insuportável o movimento 42° do Oratório, o Messias de Händel, o Hallelujah. O compositor fez a obra narrando a vida de Jesus Cristo no século XVIII, nos diversos movimentos desde sua anunciação profética, seu nascimento, vida, morte e ascensão ao céu. Ele ouve este movimento todo dia, porque é a parte da peça que cuida da ressurreição. E, afinal, ele ressurge, lépido e fagueiro, ao mundo dos vivos, sem lembrar que mais uma noite o espera, antes do encontro final com a mãe de todas as noites.
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