Amigos inseparáveis

RUY PALHANO
Psiquiatra, Membro da Academia Maranhense de Medicina e Doutor Honoris Causa – Ciências da Saúde – EBWU (Flórida EUA).
Houve um tempo em que a expressão “amigos inseparáveis” evocava cenas de infância, confidências noturnas, ombros compartilhados em dias tristes e risos imensos em tardes de sol. Eram laços reais, construídos no tempo da convivência, forjados no calor do afeto e na partilha do cotidiano.
Mas, na modernidade líquida e acelerada, esse título nobre foi discretamente apropriado por um novo companheiro: o telefone celular. Hoje, ele é o verdadeiro amigo inseparável — não aquele que conhece nossas histórias, mas aquele que nos prende os olhos, as mãos, o pensamento e o tempo. Um vínculo inquebrável que atravessa o dia e a noite, a mesa e o travesseiro.
Não se trata mais apenas de um instrumento útil, de uma ferramenta de comunicação ou organização. O telefone tornou-se parte do corpo, uma prótese emocional, uma extensão do nosso eu. McLuhan já alertava que os meios tecnológicos são prolongamentos dos nossos sentidos.
No caso do telefone, ele é também a extensão do nosso narcisismo, da nossa ansiedade e da nossa carência relacional. Nunca saímos sem ele. Tocamo-lo mais do que tocamos em qualquer pessoa. Consultamo-lo mais vezes do que olhamos nos olhos de alguém. Dormimos com ele, comemos com ele, vamos ao banheiro com ele. E quando esquecemos em casa, é como se faltasse um órgão vital.
Há, por trás disso, um fenômeno psicológico mais profundo: o apego deslocado. Aquilo que antes era investido em pessoas — pais, parceiros, filhos, amigos — foi sendo silenciosamente canalizado para objetos. A lógica emocional do apego, estudada desde Bowlby, psiquiatra e psicanalista britânico, hoje se manifesta em novas formas: a ansiedade de separação, o medo de perder o “vínculo”, a compulsão por checar, a ilusão de presença constante.
Temos, sem perceber, um amigo que não nos abandona — mas que nos domina. Um amigo que nunca discorda — mas que nos isola. Um amigo que está sempre disponível — mas que nos rouba a presença. Essa relação simbiótica revela um desequilíbrio: o que era para ser uma ferramenta virou senhor. O que era para facilitar, escraviza.
O que era para conectar, afasta. As pessoas se sentam à mesa, mas cada uma mergulha em sua tela. Os casais compartilham o mesmo quarto, mas não os mesmos afetos. Pais e filhos coexistem no mesmo espaço, mas não trocam palavras. A tela acesa tornou-se um portal de fuga do mundo real, um lugar onde se pode evitar o confronto com o outro e com a própria interioridade. A solidão contemporânea, paradoxalmente, não é mais marcada pelo silêncio, mas pela hiperconectividade vazia.
Sherry Turkle, eminente professora, escritora e psicóloga americana, especialista em como a tecnologia impacta nossa identidade e nas relações humanas, em sua obra “Alone Together”, já alertava: estamos criando relações com objetos que simulam pessoas e negligenciando as pessoas reais à nossa volta. Estamos sozinhos, mas acompanhados por um dispositivo que nos dá a ilusão de presença.
Não é exagero dizer que o telefone celular assumiu funções de confidente, de terapeuta, de lazer, de consolo e de companhia. Mas ele não nos devolve escuta, não oferece empatia verdadeira, não se sacrifica por nós. É importante reconhecer que o apego excessivo ao telefone não é apenas um fenômeno individual, mas um sintoma coletivo de uma sociedade ansiosa, hiperestimulada e carente de vínculos sólidos.
Estamos educando crianças que crescem olhando para telas em vez de rostos. Estamos formando adultos que preferem mensagens de texto a conversas presenciais. E tudo isso gera um tipo de vínculo empobrecido, um laço que simula conexão, mas que não suporta a profundidade de um afeto verdadeiro.
Talvez seja hora de perguntarmos: o que estamos perdendo enquanto seguramos tão firmemente nossos amigos inseparáveis de vidro e silício? Que amizades estamos deixando de construir? Que silêncios estamos evitando? Que presenças estamos negligenciando?
Não se trata de demonizar a tecnologia, mas de redimensioná-la. O telefone não pode ocupar o lugar do abraço, do olhar, da escuta. Ele pode ser útil, mas não substitui o humano. É preciso reaprender a viver com as mãos livres, com os olhos atentos ao outro, com o coração disponível. Desligar o telefone por algumas horas pode ser um ato de coragem. Ou de amor. Ou de cura.
Afinal, o verdadeiro amigo inseparável não é aquele que está sempre em nossa mão, mas aquele que está sempre ao nosso lado — mesmo quando a bateria acaba.
Na realidade, nada substitui a beleza da presença humana, o calor de uma conversa sem pressa, a alegria de um riso compartilhado.
O convívio real é o território onde florescem os afetos mais profundos, onde a alma respira e encontra repouso. É nesse encontro com o outro — imperfeito, imprevisível, mas verdadeiro — que reside a possibilidade de pertencermos a algo maior do que nós mesmos.
Portanto, o valor do encontro presencial é uma experiência humana insubstituível de vinculação afetiva, algo que a prática psiquiátrica se conhece muito bem ao lidar com as consequências da carência relacional. Quando se diz que viver é “tocar e ser tocado, ouvir e ser escutado”, “ver ser visto” nós estamos indo ao cerne da condição humana, qual seja, a necessidade do outro como espelho, abrigo e limite.
Num tempo em que as tecnologias simulam presença, mas anulam profundidade, isto não assegura os fundamentos da saúde mental e coletiva da alegria de existir, pois sabe-se que quando o outro real desaparece da experiência humana, abre-se espaço para uma sociedade fria, individualista e emocionalmente insegura e empobrecida.
No plano coletivo, cresce a indiferença, o isolamento e a perda do senso de comunidade. No plano individual, emergem a solidão crônica, os transtornos comportamentais e psiquiátricos e a sensação de vazio existencial. Sem o vínculo humano, adoecemos por dentro — mesmo conectados por fora. De tal forma “Que jamais deixemos que a frieza das máquinas substitua o calor dos encontros. Porque é no outro — real, presente e humano — que reencontramos o sentido de viver.”
O conteúdo deste blog é livre e seus editores não têm ressalvas na reprodução do conteúdo em outros canais, desde que dados os devidos créditos.