A honradez da palavra está se desfazendo modernamente

RUY PALHANO
Psiquiatra, Membro da Academia Maranhense de Medicina e Doutor Honoris Causa – Ciências da Saúde – EBWU (Flórida EUA).
Ao longo da história humana, a palavra empenhada sempre ocupou um lugar central na construção dos vínculos sociais. Antes mesmo da existência de códigos legais, contratos escritos ou tribunais de justiça, a palavra era o alicerce invisível sobre o qual se erguiam os pactos de confiança que permitiam a convivência em grupo.
Honrar a palavra significava honrar a si mesmo, manter a integridade pessoal e garantir a sobrevivência de laços de confiança no interior das comunidades. Era através da palavra cumprida que se sustentavam relações comerciais, políticas, familiares e comunitárias, assegurando a estabilidade da ordem social.
Diversas tradições culturais e religiosas reforçaram, ao longo dos séculos, esse compromisso com a verdade da palavra. No contexto islâmico, o conceito de Al-Hadees e a rigorosa transmissão dos Hadiths ilustram como a palavra é entendida como extensão da ética e da responsabilidade humana.
No pensamento filosófico ocidental, Kant estabeleceu a veracidade como imperativo categórico, enquanto Kierkegaard, Heidegger e Paul Ricoeur aprofundaram a noção de que a palavra deve ser uma expressão autêntica do ser. A comunicação, segundo Ricoeur, é sempre um pacto de confiança, e romper esse pacto é um ato de violência simbólica contra o outro.
Bourdieu, Fromm e Grice, cada um em sua perspectiva, apontaram que a palavra é, simultaneamente, uma ferramenta de poder, um reflexo da saúde psíquica e um contrato implícito de cooperação.
Contudo, na sociedade contemporânea, vivemos uma era de erosão ética da palavra. O compromisso verbal tem sido desvalorizado, substituído por discursos performáticos, promessas vazias e um uso cínico da linguagem como instrumento de manipulação. Essa degradação da honradez verbal tem raízes multifatoriais e se manifesta em todos os níveis das relações humanas. E, o pior, é que todas essas condenáveis deformações que está havendo em torno da honradez, no uso da palavra, têm se tornado, a cada dia, algo comum e habitual.
Entre os fatores que favorecem essa crise que está havendo e se agravando na honradez da palavra, destaca-se a falta de educação moral básica, com famílias e escolas que pouco valorizam o ensino ético sobre o peso de um compromisso verbal.
O imediatismo da vida moderna, movida pela pressa e pela busca de resultados rápidos, também contribui para o abandono da palavra como valor perene. Além disso, a cultura da aparência e do marketing pessoal transformou o discurso em mero espetáculo, onde a preocupação central é causar boa impressão, garantir credibilidade imediata, ainda que à custa da verdade.
Outro fator central e extremamente importante neste sentido é o relativismo moral, que diluiu os conceitos de certo e errado, tornando a verdade um elemento flexível e adaptável aos interesses momentâneos. As relações humanas, por sua vez, tornaram-se mais frágeis e efêmeras, e, num mundo onde os vínculos são descartáveis, a palavra também se tornou descartável.
O individualismo exacerbado, que valoriza o eu em detrimento do coletivo, enfraquece ainda mais a responsabilidade com a palavra proferida. No campo político e institucional, o exemplo negativo de figuras públicas, autoridades e líderes que mentem descarada e abertamente, sem consequências, reforça o ciclo de desonra da palavra, criando um efeito cascata nas práticas cotidianas da população.
A crise de confiança nas instituições amplia esse problema gravíssimo quando está em jogo a credibilidade em que se faz em cima das inverdades que se diz e faz, pois quando os órgãos de justiça, mídia e governo falham em sustentar a verdade, a desconfiança generaliza-se, atingindo todas as esferas da vida social.
Em nível existencial, a perda do sentido de honra e dignidade interior completa esse quadro preocupante. Sem um senso profundo de responsabilidade ética, a palavra passa a ser vista apenas como ferramenta de manipulação, desprovida de valor absoluto ou de enrolação como se diz popularmente.
As consequências desse processo são devastadoras. No plano emocional e psicológico, a generalização da mentira gera situações graves de angústia, isolamento pessoal e social, insegurança profunda nas pessoas e uma crescente sensação de vulnerabilidade social.
Os vínculos afetivos tornam-se frágeis, gerando medo e insegurança psicossocial, a empatia se esvai gerando desamor, desarmonia e violência, a amizade perde profundidade e o respeito e o tecido social da convivência social adoece. Vive-se um ambiente de ceticismo crônico, em que ninguém mais confia plenamente no outro, e as relações humanas passam a ser regidas pela suspeita e ameaça constante.
Frente a esse cenário devastador nas relações humanas devido à incredibilidade na palavra, a restauração da honradez da palavra torna-se uma tarefa urgente e inadiável. Essa reconstrução precisa começar no núcleo mais íntimo da formação humana: a família.
Cabe aos pais, educadores e formadores de opinião resgatar a noção fundamental de que a palavra empenhada é um compromisso sagrado. Que a palavra tem força de fé, que ela é inegociável e que ela é, em si mesmo, um dos mais importantes elos de ligação entre os seres humanos.
Somente através de uma educação ética persistente e do cultivo, desde a infância, da responsabilidade moral com o que se diz, será possível reverter essa tendência de banalização da palavra. Honrar a palavra é mais do que um gesto de boa educação; é um ato de resistência ética, uma declaração de fidelidade à própria humanidade.
Num tempo de discursos vazios, de promessas manipuladas e repleto de narrativas instantâneas e instáveis, ser alguém de palavra firme, que diz o que pensa e cumpre o que promete, é um exercício de dignidade e coragem.
A desonra à palavra, embora se encontre, modernamente, em condições absolutamente majoritárias, devemos lutar para manter acesa a chama da confiança e da possibilidade de um convívio social mais justo, saudável e humano. Por isto mesmo, é fundamental educar as crianças, desde a infância mais precoce, para falar e cultivar a verdade e a responsabilidade ética. Precisamos garantir a coerência entre o que dizemos e o que fazemos, resgatando o sagrado compromisso moral com cada afirmação proferida.
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