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Da carne e osso ao silicone quase-vivo

RUY PALHANO
Psiquiatra, Membro da Academia Maranhense de Medicina e Doutor Honoris Causa – Ciências da Saúde – EBWU (Flórida EUA).

Estamos assistindo a uma profunda transformação antropológica, psicológica, social e cultural na vida moderna. Essas transformações vêm ocorrendo em diferentes e significativos contextos. Um dos fatos demonstrativos dessas transformações, entre tantos, é o caso dos bebês e esposas reborn, artefatos de vinil inserido no contexto das relações humanas, considerados gente.

Esses artefatos, embora fabricados e moldados artesanal ou industrialmente, projetam-se no mundo emocional das pessoas como companhias reais, levando-nos a refletir com profundidade sobre as grandes questões existenciais, sociais e culturais que permeiam nosso tempo. Em primeiro plano, destaca-se a profunda crise das relações humanas contemporâneas, marcadas pelo distanciamento emocional, pela dificuldade de estabelecer vínculos afetivos sólidos e pela crescente prevalência da solidão e do isolamento social.

A hiperconectividade digital, paradoxalmente, tem tornado as relações humanas mais superficiais e frágeis, dificultando o desenvolvimento de conexões reais, intensas e duradouras, isso é, o homem moderno a cada momento se afasta mais dos seus semelhantes.

Nesse cenário, tanto os bebês quanto as esposas reborn e muitos outros artefatos industriais desta magnitude que estão por virem, surgem como formas de compensação afetiva, psicológica e psicopatológica oferecendo presença constante, segura e previsível diante das incertezas das relações humanas reais.

Outro ponto relevante é o fenômeno da idealização e do controle sobre o outro, amplificado por essas criações. Ao contrário das relações humanas reais, inevitavelmente marcadas por conflitos, imprevisibilidades, mudanças e frustrações, os reborn (bonecas e esposas) são companhias ideais, que não reclamam, não exigem nada além do que lhes é dado, não envelhecem, não adoecem e, principalmente, nunca se vão. Isso reflete um desejo contemporâneo por segurança emocional e previsibilidade em um mundo cada vez mais incerto e volátil.

Essas criações hiper-realistas, por outro lado, trazem à tona questões ligadas à fronteira entre realidade e o simulacro, colocando-nos diante do dilema ético, filosófico e psicológico sobre o que realmente define o humano. Com a tecnologia avançando rapidamente e proporcionando experiências cada vez mais realistas, nossa percepção sobre o que é humano, o que merece afeto e o que pode substituir relações reais é colocada sob questionamento.

Não estamos diante apenas de bonecos e esposas super-realistas, dotadas de traços humanoides, mas sim de projeções simbólicas e psicodinâmicas que desafiam nossa compreensão sobre autenticidade emocional, comportamental e existencial. Condições que poderão ser consideradas protótipos de uma sociedade futura de seres não humanos, porém dotadas de prerrogativas humanas.

Na realidade, entendo que esses fenômenos emergentes e estranhos apontam para uma sociedade modernizada, marcada por profundas incongruências afetivo-comportamentais e carências emocionais e pelo desamparo afetivo.

Pessoas que buscam nos bebês, nas esposas reborn e em outros futuros artefatos destes uma compensação para dores e perdas profundas revelam não apenas suas próprias dificuldades individuais, mas também uma falha estrutural em prover formas coletivas e autênticas de pertencimento, acolhimento e sentido existencial e de formar vínculos humanos mais autênticos e verdadeiros.

No fundo, essas criações revelam, como havíamos sinalizados anteriormente, uma profunda crise existencial e relacional vivenciada pela sociedade contemporânea. Podemos assegurar que vivemos um paradoxo perturbador: nunca estivemos tão conectados e, simultaneamente, tão isolados afetivamente.

A necessidade humana fundamental de estabelecer vínculos reais, autênticos e profundos encontra-se fragilizada, levando muitos a buscarem alternativas seguras e previsíveis, como as bonecas e esposas reborn, para aliviar a dor e a angústia derivadas da ausência ou do fracasso desses vínculos. Sem nos esquecermos que nós humanos nascemos e vivemos baseados em vínculos sem os quais nos descaracterizaríamos como seres humanos.

Porém, além dessa dimensão existencial e sociocultural, diante de todos estes novos fatos, também existem outros componentes psicodinâmicos e psicopatológicos. Isto é, nem todos aqueles que buscam essas bonecas ou esposas como substitutas afetivas sofrem de um transtorno mental, porém podemos inferir que em muitos casos podem indicar sintomas ou sinais de patologias graves como depressão, transtornos de ansiedade severa, transtornos do apego, ou mesmo formas atenuadas de quadros psicóticos ou de transtornos de personalidade.

Nestes quadros clínicos específicos, a busca por uma realidade artificialmente controlável, como os artefatos acima citados, feitos de silicone, vinil, areia esterilizada, fibras de algodão, grânulos de vidro, podem gerar um mecanismo compensatório diante da dificuldade em se estabelecer vínculos verdadeiros interpessoais reais ou da incapacidade de lidar com perdas e frustrações do cotidiano, vivências que podem estar por trás destes apegos com estes seres irreais e imaginários.

A utilização de bebês e esposas reborn como mecanismo compensatório pode indicar, também, uma espécie de regressão emocional, onde o indivíduo retorna a estados afetivos mais primitivos para lidar com angústias e vazios insuportáveis. Trata-se de um fenômeno complexo, em que elementos emocionais, sociais, culturais e clínicos se entrelaçam, produzindo uma experiência ao mesmo tempo real e simbólica.

Portanto, poderíamos assegurar, que de fato pode existir um substrato psicopatológico possível e significativo por trás dessa busca incessante, por algo que estamos criando para compensar os fracassos evidentes que está havendo nas relações humanos na modernidade, muito embora se saiba que isto é apenas um aspecto dentro de um quadro mais amplo e profundo de uma crise contemporânea da condição humana.

A predominância desse fenômeno revela que não apenas indivíduos, mas toda uma sociedade está vivendo um momento histórico marcado por uma fragilidade afetiva generalizada, uma profunda sensação de desamparo existencial e uma dificuldade cada vez maior de estabelecer vínculos humanos genuínos, podendo tudo isto, em breve nos conduzir conviermos em uma sociedade insana e desumana.

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