Cara de pau e as relações humanas: do desapego à vergonha

RUY PALHANO
Psiquiatra, Membro da Academia Maranhense de Medicina e Doutor Honoris Causa – Ciências da Saúde – EBWU (Flórida EUA).
Cara de pau, atrevido, descarado, sem-vergonha, insolente, ousado, arrogante, cínico, impudente, atirado, caradura, cara-lisa são algumas designações com as quais são conhecidos os que são vulgarmente chamados de “cara de pau”. Figuras carimbadas e folclóricas que fazem parte da nossa comunidade.
É uma expressão amplamente utilizada na língua portuguesa para descrever indivíduos que agem sem constrangimento, vergonha ou preocupação com o julgamento dos outros. Nos últimos anos, passou inclusive a ser largamente usada em rodas de conversa e entre amigos, ao ponto de ter se popularizado.
O termo, popular e bem-humorado, pode ser aplicado em diferentes contextos, desde situações corriqueiras do dia a dia até casos de comportamento social reprovável e mais complexos. Mas o que faz alguém ser rotulado como “cara de pau”? Trata-se apenas de uma questão de atitude ou há um traço de personalidade mais profundo por trás dessa característica?
Eis uma questão difícil de definir. Todavia, originariamente, essa expressão remonta a uma analogia simples: a madeira é um material rígido, sem reações. Dessa forma, dizer que alguém tem “cara de pau” implica que a pessoa age como se fosse imune ao constrangimento, mantendo-se impassível, inabalável diante de situações em que outros sentiriam vergonha ou embaraço. No Brasil, a expressão tornou-se um símbolo para descrever indivíduos que pedem favores excessivos, fazem exigências descabidas ou transgredem normas sociais sem parecer se importar.
Do ponto de vista psicológico e comportamental, ao olharmos mais a fundo, a expressão “cara de pau” pode estar associada a um traço psicológico específico: a ausência ou baixa sensibilidade ao constrangimento social. Algumas pessoas possuem uma capacidade inata de ignorar convenções sociais e agir de maneira direta, sem se preocupar com julgamentos. Esse comportamento pode ser observado em diversos perfis de personalidade, desde o indivíduo extrovertido e audacioso até aquele que se utiliza da desfaçatez para alcançar objetivos.
Os “caras de pau” muitas vezes apresentam características comuns. Entre estas, destaca-se a falta de constrangimento social, pois não se deixam abalar por críticas ou olhares de reprovação. Em geral, têm destacada habilidade para improvisar e conseguem sair bem de situações embaraçosas com discursos convincentes ou através de piadas. São personalidades persuasivas e ousadas, capazes de convencer os outros a atenderem seus pedidos, mesmo que pareçam absurdos.
Essa ousadia revela uma fronteira tênue entre coragem e oportunismo, pois podem ser vistos como destemidos ou, em alguns casos, como aproveitadores. O julgamento sobre a “cara de pau” depende muito do contexto. Em algumas situações, esse traço pode ser admirado. Por exemplo, pessoas que enfrentam dificuldades financeiras e não hesitam em pedir ajuda demonstram coragem ao lidar com seus problemas de forma direta. No mundo dos negócios, a ousadia de um empreendedor que não tem medo de negociar ou insistir em uma proposta pode ser um diferencial competitivo.
Por outro lado, essa expressão pode ter conotação negativa quando associada ao oportunismo, ousadia sem controle e/ou à falta de ética. Há aqueles que utilizam essa característica para obter vantagens, se endividar, tirar proveitos e benefícios e lucrar seja furando filas, tomando crédito pelo trabalho alheio ou manipulando situações em benefício próprio.
Existe uma linha tênue entre a desinibição e a falta de escrúpulos no comportamento de uma “cara de pau”, o qual pode ser interpretado de formas diferentes, dependendo da intenção por trás da atitude. Algumas pessoas simplesmente possuem um alto nível de autoconfiança e não se abalam com rejeições ou críticas. Outras, no entanto, ultrapassam os limites morais e sociais, tornando-se insensíveis às consequências de suas ações para os outros.
É importante distinguir entre uma pessoa sem-vergonha por necessidade ou estratégia social e aquela que se aproveita de sua desfaçatez para enganar ou se beneficiar de maneira oportunista e injusta. O primeiro tipo pode ser visto como ousado, determinado ou destemido, enquanto o segundo é falso, antiético e manipulador ou mesmo um cara de pau.
Diante do exposto, pode-se concluir que “cara de pau” é um traço de caráter que pode ser tanto uma característica positiva quanto um defeito, dependendo, evidentemente, da forma como se manifesta. Na sociedade, muitas pessoas que se destacam, seja no mundo profissional, artístico ou político, possuem essa característica de ousadia combinada com restrição da vergonha. No entanto, quando esse comportamento ultrapassa o limite do respeito e da ética, ele pode ser malvisto e prejudicar a reputação do indivíduo.
Comparativamente, os designados como mau-caráter têm atitudes que envolvem mentira, manipulação e desonestidade. Agem com intenções que prejudicam outras pessoas deliberadamente. Não apenas ignoram convenções sociais, mas violam princípios éticos conscientemente. Estão dispostos a enganar, trapacear e lesar terceiros para alcançar seus objetivos.
Enquanto o “cara de pau”, conforme já vimos, pode ser apenas alguém sem vergonha, que insiste em aproveitar uma oportunidade sem medo do ridículo, o mau-caráter ultrapassa os limites morais, explorando situações e pessoas de forma premeditada e egoísta, buscando sempre tirar proveito. Um exemplo prático seria um indivíduo que pede um favor exagerado, como pegar carona todos os dias sem oferecer ajuda para o combustível. Isso pode ser uma atitude “cara de pau”, mas não necessariamente maldosa. Já alguém que mente sobre uma dívida para não pagar ou prejudica intencionalmente um colega de trabalho para subir de cargo está agindo com mau-caráter.
Em ambos os casos, guardando-se as devidas distinções, tanto o cara de pau quanto o mau caráter, são tipos humanas que estão aí muitas vezes abaixo do nosso queixo, nos rondando continuamente, preparando o terremos ou oportunidades para dá o golpe. Em sendo assim, do pinto de vista das relações humanas o cara de pau é bem menos ofensivo e danoso que o mau caráter.
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