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A mentira vista por dentro

RUY PALHANO
Psiquiatra, Membro da Academia Maranhense de Medicina e Doutor Honoris Causa – Ciências da Saúde – EBWU (Flórida EUA).

A mentira está no “endos humanus” ou, ainda, um traço inato, da nossa espécie. Isto significa, que todos nós, potencialmente, somos propensos a mentir, uns mais outros menos, uns, mais frequentemente, outros de vez em quando. Por ser uma caraterística endógena, a mentira é um fenômeno ultra complexo e trans histórico, que permeia todas as culturas e atravessa os tempos, manifestando-se de diferentes formas em todas as etapas da vida humana.

Embora seja considerada como algo moralmente reprovável e inaceitável, na maioria das sociedades, ela é uma parte inevitável das interações sociais nas dinâmicas humanas. Para compreendê-la, em sua plenitude, é necessário um olhar multidisciplinar que inclua a antropologia, psicologia e sociologia, a psiquiatria, além de uma análise fenomenológica rigorosa sobre como ela se manifesta nas distintas etapas da vida.

Mentir é um comportamento que distorce ou oculta a verdade com o objetivo de enganar, trapacear, blefar e falsear. Essa distorção da realidade pode ocorrer de distintas maneiras, predominantemente, através da omissão de informações, da alteração de fatos ou da produção de fatos irreais. A diferença essencial entre a verdade e mentira está na intenção deliberada de enganar.

A possibilidade de se mentir, potencialmente está presente em todos os seres humanos e, por mais que seja vista como algo negativo e reprovável ela tem objetivos variados, entre estes um mecanismo de proteção pessoal, de obtenção de vantagens ou de fuga de situações desconfortáveis ou ainda, uma manifestação psicopatológica (mitomania). Isso faz da mentira uma poderosa ferramenta psicológica utilizada em determinadas circunstâncias.

Antropologicamente, como já citamos acima, a mentira se manifesta diferentemente em distintas culturas e sua aceitação varia de acordo com o contexto sociocultural. Em muitas sociedades, especialmente aquelas com fortes tradições religiosas ou que adotam códigos morais rígidos, a mentira é normalmente rechaçada, condenada. Entretanto, em outros contextos, mentir pode ser considerado um recurso aceitável, uma forma de preservar relações sociais ou garantir a harmonia do grupo.

Por sua vez, psicologicamente, mentir pode, em alguns casos, revelar desordens psicológicas graves, como a mitomania ou Pseudologia Fantástica (mentira patológica). Condição caracterizada por uma compulsão patológica para mentir, onde o indivíduo cria e sustenta mentiras que podem ser tão elaboradas que até ele próprio passa a acreditar nelas.

Nesses casos, a mentira não é mais uma ferramenta de proteção psicossocial, mas uma distorção patológica grave da realidade. Ela pode também estar associada a transtornos como a Personalidade Borderline, a Personalidade Antissocial (Psicopatia), ou a quadros maníacos do Transtorno Afetivo Bipolar, a quadros delirantes/alucinatórios, entre outros transtornos mentais.

Além disso, a mentira também pode ser um reflexo de processos psicológicos inconscientes, como a racionalização e a auto enganação, mecanismos de defesa que permitem que o indivíduo crie versões da realidade para evitar confrontos internos ou externos. A psicologia e a psiquiatria, portanto, explora a mentira tanto como um fenômeno disfuncional em contextos específicos, ou como um sinal de desordens psiquiátricas profundas.

Na sociedade contemporânea, a mentira adquiriu novas dimensões com a ascensão das redes sociais e da comunicação digital. O fenômeno designado de “Fake News” é um exemplo claro de como a mentira pode ser usada em larga escala para manipular a opinião pública e influenciar decisões políticas importantes.

Por outro lado, a internet e as redes sociais facilitaram a disseminação rápida de informações falsas, criando um ambiente onde a verdade e a mentira coexistem. A mentira, nesse contexto, deixou de ser um fenômeno individual para se tornar um mecanismo de manipulação coletiva, afetando a confiança pública nas instituições e gerando uma cultura de insegurança e desconfiança.

Apesar de toda a complexidade, a mentira começa a ser praticada cedo na vida. Crianças muito pequenas já são capazes de mentir, ainda que suas mentiras sejam mais fantasiosas e menos maliciosas, quase sempre fruto de uma dificuldade em distinguir entre a imaginação e a realidade. Pesquisas mostram que, a partir dos dois anos de idade, as crianças já começam a testar os limites da verdade e a experimentar as primeiras mentiras.

Durante a adolescência, a mentira assume novas funções. Os adolescentes mentem com frequência para ocultar comportamentos que sabem que não serão aprovados pelos pais ou para criar uma falsa identidade social entre os pares. A necessidade de autoafirmação e independência faz com que a mentira seja uma estratégia comum nesse período de transição, tanto para escapar de repreensões quanto para manter um certo controle sobre suas próprias vidas. Ao mesmo tempo, a mentira na adolescência pode ser um sinal de problemas mais profundos, como dificuldades emocionais relacionadas a insegurança e/ou autoestima.

A mentira, em suma, é um fenômeno humano universal, presente em todas as fases da vida e em todas as sociedades. Se manifestam desde as pequenas mentiras do dia a dia, até as grandes manipulações coletivas que moldaram o cenário político e social.

No mundo contemporâneo, onde a fronteira entre verdade e mentira está cada vez mais tênue, a compreensão desse fenômeno se torna ainda mais crucial para transitarmos melhor nas intrincadas relações humanas.

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