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A “empregada dos Sarney”: uma crônica de repugnância social

SEBASTIÃO UCHOA
Advogado do escritório Uchôa & Coqueiro Advocacia, delegado de Polícia Civil aposentado.

O psiquiatra carioca Marcus Cruz, salvo engano, é o autor da frase “seria cômico, se não fosse trágico, matar o canibal e herdar a sua fome”. Pego essa bela frase reflexiva a fim de, a parafraseando, poder aplicá-la a um grave crime ocorrido entre os municípios de Estreito e Santa Helena, pertencentes à Baixada Maranhense, nos idos de 2001, cujas chacotas da população local, pela falta de consciência de cidadania, por parte de alguns participantes numa rádio local à época dos trabalhos investigativos policial ali ocorridos, deram-se em tons discriminatórios e vis quanto à dignidade da pessoa humana de uma mulher, que foi morta e teve seu corpo desovado na beira de uma rodovia, em face da insistência do órgão policial civil na elucidação do crime, uma vez a vítima ser negra e pobre, moradora da cidade de Pinheiro, também na Baixada Maranhense, especialmente.

O corpo da jovem fora desovado a 10km da cidade de Santa Helena, entre esta e a cidade Pinheiro – “a Princesa da Baixada”, terra natal do ex-presidente José Sarney.

Foram realizadas várias diligências em torno daquele achado cadavérico, ou seja, da chegada ao local com o isolamento do mesmo, leitura preliminar com a chamada informalidade na visualização mental dos caminhos de um possível crime haver acontecido e, daí, iniciaram-se as buscas de vestígios nos arredores daquele local, realizando um trajeto de suposição dentro de um raio de 1km para frente e para trás, tendo como resultado positivo, de logo o êxito com a localização de um par de luvas manchadas com tonalidade avermelhada, dando a entender se tratar de sangue coagulado, obviamente.

Ao lado do corpo, estavam uma mochila com os pertences da vítima e um copo plástico contendo o epitetado veneno para rato, chamado “chumbinho”.

Como recomendado nos manuais de investigação dos crimes contra a vida, foi realizado um profundo levantamento da vida pregressa da vítima. A partir daí, mediante o achado das luvas e a visibilidade do rastro médico-legal da chamada “máscara equimocial facial” (rosto escurecido em detrimento do restante do corpo), outra inicial conclusão não fora, senão, que se tratava aquele caso um crime de homicídio, nunca de um suicídio por envenenamento, embora com pendências de outras diligências no bojo das investigações iniciais.

As investigações incomodaram terceiros e terceiras naquela região, tanto que chegaram ao ponto de dizer numa rádio local, na certa alguém que tinha envolvimento direto ou indireto com os autores do bárbaro crime, que “a vítima deveria ser bem empregada dos Sarney, para que a Polícia desse tanta atenção ao caso”.

Grave equívoco, limitação cultural ou desinformação de quem assim vociferou tal absurdo, pois quanto mais se provoca o tirocínio policial, mais este aguçado buscará elementos que convirjam para elucidação completa de um delito, independente da qualificação biopsicossocial da vítima, por conseguinte, vítima é vítima; e a lei, por meio do Estado, serve para tutelar o direito a todos que vivam dentro de uma organização politicamente organizada, chamado Estado, obviamente.

O fato é que, diante das investigações realizadas, conseguiu-se identificar o veículo utilizado para desovar o corpo (apenas na cidade de Encruzo só existiam dois modelos do tipo de carro visto na noite anterior em que o corpo foi colocado às margens daquela rodovia, sobretudo pelas características peculiares), apontar os indiciados direto e indireto, os motivos do delito, as denominadas “estórias coberturas” (álibis) utilizados por um dos indiciados (que a vítima saíra do hospital indignada porque não conseguira realizar um aborto), e no socorro da Medicina Legal, desta feita por meio da diligencia médico-legal-policial de Exumação, constatou-se que não havia mais feto e o útero da vítima fora perfurado. Registre-se, de passagem, que na época o falecido e maior médico legista do estado do Maranhão, o saudoso Dr. Wanderlei, atendeu à nossa requisição de forma até atípica, uma vez naquele período, se quer se tinha viatura para o seu deslocamento da cidade de São Luís para a cidade de Pinheiro, local onde ocorrera o sepultamento da vítima, embora os esforços da gestão da Secretaria de Segurança Pública em novos investimentos na denominada “Polícia Técnica”, hoje “Perícia Oficial”.

Início da completa elucidação do crime ocorrido com firmamento de autorias, materialidades e circunstâncias, instalaram-se com oitivas, interrogatórios e outros afins. Ou seja, crime completamente elucidado.

“Empregada dos Sarney” ou não, um ser havia perdido a vida e o Estado não poderia deixar de dar a resposta devida com a elucidação completa do crime, indiciando os autores, apontando a motivação e as circunstâncias por que se deram toda a trajetória da trama delitiva acontecida (um crime de aborto mal sucedido com sequelas irreversíveis à vítima pela perfuração do útero e outras lesões, associado ao de homicídio por estrangulamento diverso do suicídio maquiado pelos autores, a fim de se furtarem à responsabilidade criminal correspondente).

Mesmo que o senso comum impunha limitações à compreensão das obrigações institucionais, típico de modelo societário ainda bastante incipiente em seu processo de amadurecimento no exercício do respeito à cidadania em seu cotidiano existencial, especialmente quando violada esteja a dignidade da pessoa humana em todas as acepções, o acontecido despertou em toda a Baixada Maranhense acerca da importância em que se deve dar ao respeito à vida e pelo dever de o Estado de dar a resposta cabível em tempo real diante do nefasto acontecimento, seja qual for a vítima de delito na sociedade.

Hoje, nada melhor também ser bastante acompanhado, fiscalizado e até cobrado ante o novo modelo de advocacia defensiva criminal em curso no país que muito colaborar-se-á com a promoção e efetivação da Justiça em nosso combalido Brasil, onde, milhares de delitos quando não elucidados, muitos deixam a deixar em suas frágeis elucidações, colaborando com a tamanha impunidade no pais, especialmente nos mais diversos quinhões onde pouco ou nada ainda chega do Estado com o poder-dever de proteger e resguardar os direitos de todos os seus cidadãos, sobretudo. Pelo menos, a lição de educação e consciência social, parece que foi impressa naquela região ante o desfecho investigativo ocorrido. Oxalá os abençoe nessa tomada de consciência e libertação de inconsciência social.

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