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“Foi Titio”: deletéria injustiça para advocacia criminal

SEBASTIÃO UCHOA
Advogado do escritório Uchôa & Coqueiro Advocacia, delegado de Polícia Civil aposentado.

A sensação diante de casos bárbaros de injustiças por más investigações, conduzidas em nosso país, é coisa de arrepiar. Causas são diversas (incompetência profissional, falta de habilidade, “indústria” dos concurseiros, egoísmo, empolgações por vaidades movidas por emoções e, às vezes, descompromisso com a busca do justo diante de um caso concreto).

As situações acima induzem que umas superam as outras, especialmente, quando o Estado não cumpre o papel dentro do efetivo cumprimento das leis que edita em todas as acepções possíveis, dando condições e cobranças ao corpo funcional para melhor cumprirem suas obrigações institucionais, ressalvadas as situações pontuais por desídias próprias dos agentes públicos como acima pontualmente apontadas.

Não foi diferente num dos municípios da Baixada Maranhense, mais precisamente em Santa Helena, nos idos de 2002, salvo engano, quando um cidadão foi profundamente exposto ao descaso estatal, sob acusação severa de haver cometido crime de abuso sexual contra uma criança de quatro anos que, por sua vez, se tratava de uma parenta próxima.

Em determinado domingo, à noite, a avó materna havia deixado com um dos seus filhos seus dois netos (duas crianças), sendo uma menina de quatro anos e o outro, um garoto de sete anos, para ir ao culto evangélico, próximo à sua residência, justamente o tio das crianças.

Voltando do culto, despediu-se do filho, que fora para sua residência, próxima à casa materna.

Dia seguinte, pela manhã, quando levara a menor de quatro anos para banhar na cacimba, a fim de ser levada à escola, deparou-se com a calcinha suja com manchas avermelhadas, aparentando serem de sangue. O desespero bateu à cabeça daquela senhora que, interpelando a indefesa e inocente netinha quem havia feito aquilo, de pronto a menor falou “foi titio”.

A mistura de indignação, ódio, rancor, raiva e vingança ou busca por justiça, cegaram aquela avó que, imediatamente, procurou a Polícia local, a fim de comunicar o acontecido e pedir providências, pois “aquilo não poderia ficar impune”.

Como várias delegacias nos quinhões desse continente chamado Brasil, e no estado do Maranhão também não é diferente, a delegacia da cidade de Santa Helena não tinha delegado de Polícia de Carreira, de forma que um policial militar “respondia pelo expediente”, circunstâncias em que, de imediato, tomou todas as providencias, segundo entendimento dele cabíveis, ou seja, ouviu a termo a referida avó materna da criança, pediu um exame de corpo de delito na criança ao médico de um precário hospital ali existente, e ouviu o filho daquela senhora. Tudo, no proceder autômato, achando que estaria fazendo tudo correto, no que tange as cautelas legais diante de qualquer investigado.

Mesmo diante da negativa de haver cometido violência contra aquela criança, resultou num pedido à Justiça para que fosse decretada a prisão preventiva daquele já precipitadamente apontado indiciado, por conseguinte confiava aquele policial que as evidências coletadas não lhe negariam a autoria e materialidade daquele bárbaro crime, com repercussão em toda a pequena cidade de Santa Helena.

A Justiça daquela comarca atendeu ao pedido da Polícia e decretou a prisão preventiva do filho daquela senhora, justamente o suposto “titio”, onde, passaram mais de 30 dias sem que o inquérito policial fosse concluído e remetido ao Poder Judiciário, por dificuldades estruturais como de sempre, tanto no interior do estado como na própria capital, que ainda perduram no estado do Maranhão, embora os esforços homéricos do atual governante e sua equipe em toda a SSP, pois se cumprir prazos processuais, é uma das grandes lástimas da advocacia criminal ante os descasos de deficiências dos poderes públicos inerentes aos chamados órgãos da persecução criminal.

A então magistrada daquela comarca, preocupada com o excesso de prazo na prisão, telefonou para a Delegacia Regional de Pinheiro, solicitando que assumisse as investigações e concluísse o procedimento policial, com imediata remessa do feito policial, já que “estava bastante avançada a investigação, bastaria relatar e remeter”, assim bem se expressou naquele período ao novo titular da Delegacia Regional aquela voz judiciária.

Remetido o inquérito para a Delegacia Regional para as “conclusões”, todos os trabalhos investigativos foram refeitos, pois o titular da Regional entendeu que não poderia relatar e o remeter à Justiça sem conhecimento detalhado dos fatos, até para formar suas convicções e não cometer qualquer tipo de injustiça, segundo já tivera informado à magistrada. O que de pronto concordou.

A coisa tomou outra direção, a partir da profunda sensação do novo presidente do inquérito, no sentido de que o homem que estava preso, poderia ser totalmente inocente, já que outras indagações sobre os primeiros trabalhos investigativos vieram à tona, quando da linha adotada nos novos trabalhos investigativos iniciados, ou seja, não davam convicção de que realmente aquele indiciado havia praticado violência sexual contra àquela  criança, já que no mínimo a mesma não sobreviveria ao ato supostamente cometido por aquele “titio”, tanto em proporções como circunstâncias gerais.

Trazido ao órgão policial, para ser reinquirido, o indiciado preso, este de forma contundente, continuou a negar haver cometido o crime em apuração, de forma que convenceu o delegado a aprofundar nas diligências.

Reinquirida a avó materna, por mais três vezes sobre os fatos por ela narrados, na terceira, veio à tona o detalhe do momento em que se depara com a vestimenta da menor manchada de sangue, e a pergunta chave quem lhe tivera feito, isto é, quem havia feito aquilo com aquela menina. Ato contínuo, a garota, olhando para trás repetiu à avó materna: “foi titio”.

O investigador, já convicto de que algum detalhe precisava fechar acerca do esclarecimento dos fatos, reperguntou àquela senhora: “no momento que a menor lhe informara quem tivera realizado aquilo com ela, qual foi o gesto que ela fez? Respondeu àquela autoridade policial: “Ah Dr. Já lhe disse: ela apenas olhou para atrás e disse que foi “titio””.

Naquele instante, o citado delegado imediatamente voltou a perguntou àquela vozinha se havia mais alguém na casa, a senhora disse, “tinha sim, seu irmãozinho que estava na porta, olhando-me banhar a minha netinha”. Arrematando a pergunta derradeira, lhe disse o citado delegado: e como a menor chama seu irmãozinho, no dia a dia, daquela moradia?

A “ficha caiu” para aquela vozinha que, de pronto entrou em desespero: a menor ao olhar para trás e ver seu irmão na porta, apenas apontou quem tivera “mexido” com ela: seu irmãozinho que também o chamava simplesmente de “Titio”.

O rebuliço foi grande naquela Delegacia Regional, diante daquele terceiro dia de intensa investigação, de forma que até um policial ficara inicialmente chateado pelo novo rumo das investigações, mas quando a verdade dos fatos revelada veio à tona, caiu em pranto de reflexão profunda, chegando a conjecturar sobre quantos suspeitos, indiciados e acusados neste país afora encontram nessas condições (vítimas do Estado), por absoluta falta de preparo dos órgãos da chamada persecução penal no Brasil? Foram seus humanos e civis desabafos…

Imediatamente, pós ouvida da criança apontada como a responsável pela lesão na vítima do fato investigado, mediante todas as chamadas cautelas legais, foram representadas à Justiça da comarca da cidade de Santa Helena, no Maranhão, pela revogação da prisão preventiva do tio dos menores, dentre outras providencias processuais cabíveis àquela indignada situação.

Fato concreto é que em matéria de investigação policial ou criminal, enquanto não se chega ao 100% da convicção, 1% que falta, pode mudar todo o rumo da história, transformando todos os 99% em estória, cuja inobservância, inúmeras injustiças por violentas precipitações mediante fortes emoções nos trabalhos investigativos iniciais, podem causar estragos irreversíveis e deletérios na vida de todos os atores envolvidos numa cena criminosa acontecida, sobretudo quando inocentes sejam ante uma injusta e mal apurada acusação.

E o pior, muitas crucificações serem repetidas na história da justiça brasileira, a olhos não vistos, senão pelos acusados em geral, em contundo estados de consciência diante do permanente estado de inocência em seu resto de viver com máculas estigmatizantes que levarão para a posteridades os traumas trazidos da passagem pelo mundo racional de seus semelhantes em estágio pela Terra.

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